
Em nova atualização da Série Nordeste BVPS, compartilhamos o texto da palestra “João Cabral de Melo Neto, Recife e Sevilha”, de Felipe Fortuna, realizada na Academia Brasileira de Letras, em 10 de abril de 2018. O poeta e diplomata apresenta uma interpretação da poesia cabralina a partir das influências das duas cidades referenciadas no título, resultando em uma poética carregada de relações e tensões entre a linguagem, as cidades, o corpo e as coisas.
A Série Nordeste BVPS é uma iniciativa que une a vocação do Blog da BVPS – formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes – aos propósitos pedagógicos da disciplina Sociologia Política do Nordeste, que está sendo ministrada na Graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ neste primeiro semestre de 2023.
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Boa leitura!
João Cabral de Melo Neto, Recife e Sevilha
Por Felipe Fortuna
Em entrevista a um jornal carioca, em 1985, quando lançou Agrestes, João Cabral de Melo Neto fez uma forte declaração: “Vivo dentro do Recife”. Note-se que o poeta, na ocasião, passava férias no Rio de Janeiro, encerrado em seu apartamento da Praia do Flamengo. Ao final daquele período, deveria voltar ao Porto, onde servia como cônsul-geral. O Recife a que ele fazia referência era a capital da infância e da memória. Não era, como a Itabira de Carlos Drummond de Andrade, “apenas um retrato na parede”; tampouco o Recife de Manuel Bandeira, cidade feliz e evocada, em que “tudo lá parecia impregnado de eternidade”. O Recife cabralino é uma presença que não dorme, uma cidade que se admira, mas também assombra, um lugar que se transporta mundo afora, que obriga a refletir e onde – fazendo-se jus à citação – o poeta continua a habitar. A declaração do poeta talvez nem fosse surpreendente aos que se lembram de um poema como “Volta a Pernambuco”, publicado em Paisagens com figuras (1956) havia 30 anos, no qual se mostra que o Recife sempre surgia diante de paisagens estrangeiras – fossem irlandesas, espanholas, inglesas:

A cidade é uma elaboração de engenheiros – aqueles que desenham o cais, que perfilam as casas, que inserem praças como espaços de respiração para ruas estreitas, que abrem avenidas e lançam pontes. Essa é a “cidade diária” que já está presente no segundo livro do poeta, O engenheiro, de 1945, e justamente no poema “O Engenheiro”, do qual cito quatro versos:

Aqui a cidade não é rural, não é vilarejo, nem povoado. É o mundo urbano que o Brasil começa a ver consolidar-se justamente naquele período, em que as grandes cidades se agigantam e o mundo rural se esvazia e perde recursos. É a cidade para onde se dirige o retirante, sem garantias de chegar. Mas o edifício, “um pulmão de cimento e vidro”, é obra do engenheiro que, para o poeta, e no mesmo poema, “pensa o mundo justo”. Mundo da pura forma – eu esclareço -, forma que se mostra tão importante para esse poeta preocupado com a luz, com o traçado das ruas, com os planos, com as linhas arquitetônicas, com tudo aquilo que o sonho do engenheiro revela. Ele escreve:

Mas “o sonho do engenheiro”, nessa poesia, é atravessado por um Recife social que também marca o poeta. E é esse Recife social que enlameia, conspurca, torna espesso e real o universo planejado e organizado que o engenheiro só consegue de fato sustentar em sonho. O poeta não abandona o plano e a ordem: porém, essas diretrizes passarão a servir a um estranhamento que se localiza na vida mesma da cidade, trazendo-lhe o sujo, o susto, a substância nova. Talvez a primeira menção a esse Recife ocorra de maneira oblíqua, como se lê nos versos iniciais de O cão sem plumas, escrito entre 1949 e 1950:

Em outras palavras: o Recife social do poeta é uma capital nordestina que, no momento mesmo de crescer e se modernizar, de exibir seus prédios novos, recebe por meio do rio – o rio Capibaribe – o fluxo de uma água estagnada. E o poeta que vive dentro do Recife sabe que o rio carrega a “vida suja e abafada” “por onde se veio arrastando”. Esse rio tem

Se não me engano, e após algumas referências mal ou bem reconhecíveis, o Recife só aparece com o seu nome próprio no longo poema O rio, publicado em separata em 1954. É um período alvoroçado para o poeta: ele acabara de ser acusado, na linguagem escandalosa do jornal Tribuna da Imprensa, como um traidor no Itamaraty (edição de 27 de junho de 1952). Um outro diplomata brasileiro o havia delatado como subversivo e comunista, o que acabou gerando um processo que impôs ao poeta o regime de disponibilidade. Somente em 1954 João Cabral de Melo Neto seria reintegrado à carreira, nomeado para o Departamento Cultural do Ministério.
Pois bem: o motivo para tanto escândalo e para o afastamento do poeta e diplomata do Itamaraty fora uma carta, assinada em 8 de janeiro de 1952, que ele enviara de Londres ao amigo e diplomata brasileiro Paulo Cotrim, que estava servindo no Consulado-Geral em Hamburgo. O teor dessa carta não é bem conhecido, mesmo entre especialistas na obra cabralina – somente foi publicada naquele jornal e, obviamente, anexada ao processo que terminou encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. Na carta, João Cabral de Melo Neto havia encomendado “um artigo – sob pseudônimo, é claro – acerca da luta que se está travando no Brasil entre os ingleses e os alemães e japoneses”. E salientara ele: “O artigo deve ser uma análise econômica da situação”. Outros termos da mesma carta – em que afirma ser importante agitar os problemas do Brasil no Reino Unido, pois “eles não conhecem nada” e confessa ter sido sondado para ser adviser em um suposto comitê para a América Latina – se revelam até pueris, mas foram interpretados como subversão. Dessa carta e de sua trajetória infeliz, quero reter o fato de que o poeta brasileiro encomenda “uma análise econômica da situação” e a necessidade de que sejam mais conhecidos no exterior “os problemas do Brasil”.
Não há dúvidas de que o poeta, já a partir de 1947, quando é pela primeira vez transferido para um posto diplomático, o Consulado-Geral em Barcelona, vai buscar interlocutores e transmitir sua visão política de quem continuava a viver no Recife. No depoimento do artista plástico catalão Antoni Tàpies, havia ao final dos anos 40 um debate entre artistas sobre “as tendências de esquerda, influenciadas pelo comunismo russo”. Explicou que o poeta brasileiro foi “quem, pela primeira vez, alertou-me para o fato de que esse dogmatismo não era muito correto, que era possível preocupar-se com os problemas sociais sem cair no mau gosto do realismo socialista.” No entanto, a leitura do livro Mémoire (1981) permite aprofundar o quanto o pensamento de Karl Marx teria influenciado muitas das convicções de João Cabral de Melo Neto. É o artista plástico catalão quem escreve em seu livro: o poeta brasileiro “foi uma das pessoas que, pela primeira vez, suscitaram em mim um verdadeiro interesse por esta ideologia: o marxismo”. Antoni Tàpies reconhecia que fora o pernambucano “uma grande influência em tudo o que tocava aos problemas fundamentais do socialismo e do materialismo dialético”. E que, por fim, nada melhor do que o marxismo para tornar a análise mais rigorosa.
Ainda está por ser feita, acredito, uma análise da poesia cabralina que articule a influência recebida de Paul Valéry com o pensamento marxista, pois esses dois polos caracterizam bem as preocupações do poeta brasileiro com a lucidez, o rigor, a análise, até mesmo a demonstração de um fazer poético que é mesmo muito singular ao dar vazão a elementos denotativos, a uma vizinhança com a prosa, a uma economia de metáforas como raras vezes se viu. A hiperconsciência presente na maior parte da poesia de João Cabral de Melo Neto está vinculada ao fato de que até mesmo a estatística – e o poeta teve experiência profissional com a matéria – pode servir de inspiração, se é que a inspiração existe mesmo para esse poeta. Sabe-se que algo da sua poesia social, a partir de O cão sem plumas, adveio da leitura de um artigo sobre a miséria no Nordeste publicado na revista O Observador Econômico e Financeiro, artigo no qual se mostrava que a expectativa de vida na Índia era de 29 anos e, no Recife, 28 anos. Em Morte e vida severina, o retirante se apresenta assim:

Não posso deixar de mencionar, e também de justapor, sobretudo quando estou tratando de cidades, a análise de Engels em um dos clássicos do pensamento social, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845), especialmente o trecho que comenta os índices deprimentes da cidade de Manchester:
As estatísticas da mortalidade revelam níveis altíssimos, principalmente por causa das mortes entre as crianças pequenas da classe operária. O delicado organismo de uma criança é o que oferece a menor resistência aos efeitos de um modo e vida miserável; o abandono a que frequentemente se vê exposta quando os pais trabalham, ou quando um deles morre, logo faz sentir seu impacto – e, sendo assim, não pode ser razão de espanto se, por exemplo, em Manchester, conforme um relatório que já citamos, mais de 57% dos filhos de operários morrem antes de completar 5 anos, ao passo que essa taxa é de 20% para os filhos das classes mais altas e, nas zonas rurais a média é de 32%. (…) Eis o ponto a que chegamos na Inglaterra, onde a burguesia, que sabe todos os dias pelos jornais o que está ocorrendo, mantém-se inteiramente despreocupada. Das duas, uma: ou toma as providências necessárias para remediar esse espantoso estado de coisas ou entrega à classe operária a administração dos interesses públicos.
Volto então ao poema “O rio”, que desce em direção ao mar e vai relatando o que vê por onde passa. A todo momento, esse rio, o Capibaribe, é ele mesmo um retirante, emparelhando-se às figuras esquálidas que vê na sua margem:

Esse rio, personagem social, faz, portanto, um caminho humano de fuga, mas não carreia consigo a fome que marcará o deslocamento do Severino. Há ironia no trajeto – como afirmar que “sempre um santo preside” à decadência das cidades que passam à margem. Esse numeroso desfile de cidades – são dezenas e dezenas – não promove, contudo, a mudança da paisagem: uma paisagem sem ornamento, a demonstrar monotonamente que já se encontra exausta, em estado terminal:

Esse secar sem apodrecer, essa “morte de coisa” representa o lugar-comum da região, que o rio atravessa sem transbordar e sem resolver. O rio atravessa as áreas das usinas, unidades devoradoras de terra que acabam os sete palmos que servirão para os homens. E, “ao entrar no Recife”, o rio se faz acompanhar, como em cortejo fúnebre, do contingente miserável dos retirantes, tão devastados quanto a paisagem:

Mas não se deve pensar que os retirantes se equivalem à paisagem: persiste nos retirantes o estigma do anonimato, pois, ao contrário das cidades, que têm nome e localização,

Assim se chega ao Recife, lugar pesadamente social, cidade que esconde outra cidade em seu subsolo: aquela “metade podre/ que com lama podre se edifica”, que contamina toda a cidade em cima, que avança como metástase, e a transforma em “uma capital mendiga”. Como foi comentado, essa cidade, feita de grupamentos urbanos deserdados, está atolada em podridão e dela, em imitação à perplexidade de Engels, escreve o poeta,

Chamo a atenção, nessa poesia sobre tanta miséria, para as seguidas aparições da palavra guenzo. Regionalismo nordestino, guenzo se refere ao muito fraco, ao adoentado, e é assim que se refere às crianças: há o “menino bastante guenzo”, que vê o rio que o vê; e há o “menino guenzo / como todos os desses mangues”, de Morte e vida severina, que acaba de nascer e anuncia uma vida curta e faminta. Outro impactante símile com o texto de Engels em sua ação política e compadecida sobre a taxa de mortalidade.
No itinerário rumo a uma “capital podre”, atravessando uma paisagem devastada na qual se observa a atividade econômica ultrapassada e sem serventia, o rio faz o percurso de um retirante. Houve quem igualasse o rio Capibaribe do poema de João Cabral de Melo Neto ao Severino que atravessa o auto de Natal pernambucano, publicado logo a seguir, no ano de 1955. A similaridade pode até mesmo servir a esquemas didáticos e professorais. Mas o retirante do poema desempenha uma importante função para o poeta: é quem pode introduzir o problema do trabalho.
Ressalto aqui: o substantivo trabalho e o verbo trabalhar aparecem 22 vezes ao longo do poema. Outros verbos, como lavrar e cultivar, e substantivos como profissão e ofício, são numerosos e pertencem à mesma tipologia, mas é de fato o trabalho – e, mais ainda, a busca pelo trabalho – que se mostra central no poema. O retirante do poema se vê condenado a um mecanismo infernal, no qual o trabalho o subjuga totalmente, assim como a sua ausência, uma vez esgotado o ciclo econômico que fazia persistir aquela forma de sobrevivência. Atraído pela cidade grande – no caso, o Recife – o Severino acaba descobrindo, por uma conversa entreouvida de dois coveiros, que havia feito uma viagem bem diferente da que pensara:

Em momento algum o Severino é um homem livre, ora devendo aos seus patrões, ora tentando escapar da necessidade que lhe impõe a vida mesma, o que Karl Marx, no livro III de O capital (1894), definiu com radical lucidez:
Na verdade, o reino da liberdade começa somente a partir do momento onde cessa o trabalho ditado pela necessidade e os fins exteriores: ele se situa, portanto, por sua própria natureza além da esfera da produção material propriamente dita.
Em outras palavras: o Recife não é lugar de redenção. Uma fase econômica moderna forçou a saída do retirante do campo – mas, na cidade, não há trabalho para o saber acumulado por ele. Puro lavrador, capaz de arar até mesmo a calva da pedra, Severino é, na prática, um animal econômico em extinção. E, ao encontrar uma mulher à janela, que vive de lucrar com a morte alheia, ouve um veredicto:

Até sua chegada ao Recife, o retirante se vê em situação calamitosa de emparedamento – e, por isso mesmo, ocorre um fato raro (sobretudo quando se pensa em termos de auto do Natal): fala abertamente em suicídio, fala em

Trata-se da parte mais visceral, mais comovente de Morte e vida Severina – e resume o fato de que de nada adiantou ter chegado ao Recife. Já o poeta se vê assombrado pelos “espectros de Marx”, que predizem pura negatividade para o destino humano. Esses espectros, por outro lado, dão título a um pequeno livro de Jacques Derrida, pensador que vê uma direta correlação entre o que Karl Marx e Paul Valéry pensam sobre uma noção do espírito político. E para quem tiver interesse em seguir o pensamento de um jovem João Cabral de Melo Neto, os livros de Karl Marx e de Paul Valéry deverão servir de fontes primordiais: são, seguramente, os heróis intelectuais do poeta.
No grupo de poemas marcadamente sociais, que fizeram o poeta viver dentro do Recife, deve constar o jamais concluído A casa de farinha, planejado a partir 1966. Pelo que se conhece, o ângulo econômico se torna ainda mais perceptível e presente, já que o poeta glosa a substituição de uma forma tradicional de fabrico da farinha por uma “fábrica nova”, que coloca em risco a identidade local e, logo a seguir, os empregos. É bem evidente a preocupação do poeta com a classe dos trabalhadores, separados com precisão em carregadores, raspadoras, raladores, prensadores, forneiros. E também seu renovado cuidado em salientar a importância do trabalho, segundo anotações que indicam:

Graças a essas anotações, sabe-se que o poema, se tivesse sido de fato escrito, traria também uma crítica ao fracasso da ação governamental da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), criada em 1959, na figura de um personagem que demora a aparecer e aparenta conhecimento limitado das condições locais. O poeta expressou não querer que esse personagem fosse semelhante a um Godot, que é pura expectativa. No poema, ele aparecia para conhecer a crise – mas de maneira inútil e inconsequente.
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Em 1947, João Cabral de Melo Neto é transferido para o seu primeiro posto no exterior: o Consulado-Geral em Barcelona. A partir de então, como sabemos, a Espanha passará a ter importância central na sua poesia. No entanto, a cidade de Barcelona não é propriamente uma referência crucial nos poemas que serão escritos – e sim, muito mais amplamente, muito mais politicamente, a Catalunha, a comunidade autônoma formada por Tarragona, Girona, Lérida e Barcelona, sua capital. Sobre o assunto, quero fazer uma observação que, a meu ver, e para minha perplexidade, tem escapado à crítica: o fato mesmo de ser a Catalunha uma comunidade autônoma deverá ter repercutido muito para o poeta brasileiro, tão interessado em história e, especialmente, tão defensor de uma independência, de uma insubordinação cara a Pernambuco, marcada pela sequência de movimentos nativistas e separatistas, a partir da Guerra dos Mascates (1710-1711) até a Revolução Praieira (1848-1850). Nesse intervalo de 140 anos, encontram-se a Revolução Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1824). O poeta brasileiro saberá glosar algumas vezes, em sua obra, esse Pernambuco insurrecto e rebelde, e dedicar o Auto do frade (1984) a Frei Caneca, o Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo. Numa entrevista concedida a mim e publicada, em 1987, no Jornal do Brasil, João Cabral de Melo Neto confessou elaborar um outro poema que, aparentemente, jamais escreveu. Ele mesmo explicou nessa entrevista:
Eu tenho anotado algumas coisas, mas ainda não comecei. Seriam as Memórias prévias de Jerônimo de Albuquerque, que era cunhado do primeiro donatário de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira. Ele chegou a Pernambuco, se juntou a uma índia, teve uma porção de filhos, depois se casou com a filha do governador da Bahia, teve outros tantos filhos, de modo que ele ficou sendo conhecido como o “Adão pernambucano”. Nesse livro ele contaria todas as injustiças e todas as monstruosidades que o Brasil vai fazer com Pernambuco. Em vez de póstumas, seriam memórias prévias: ele adivinhando tudo o que Pernambuco iria sofrer na História do Brasil. Mas não sei se tenho coragem.
Esse pequeno desvio quis apenas servir de comentário sobre uma compreensão das questões políticas e históricas de Pernambuco que deverão ter feito o poeta ainda mais sensível para a situação da Catalunha, sobretudo no dificílimo período de reconstrução da Espanha após a Segunda Guerra Mundial, que consolidou o poder de Francisco Franco.
Nesse ambiente político é que João Cabral de Melo Neto aprofundará a sua defesa do marxismo, em especial junto aos artistas e intelectuais que formavam o grupo Dau al Set [1948], alguns dos quais com participação na série de publicações conhecidas como O Livro Inconsútil, que o poeta imprimia em sua gráfica doméstica.
Em depoimento, Arnau Puig, sociólogo e crítico de arte espanhol, ainda entre nós aos 92 anos, amigo do poeta em Barcelona, dá testemunho da influência do pernambucano sobre o grupo catalão, em especial Joan Brossa. Segundo afirmou, João Cabral de Melo Neto chegou a distribuir um livro com discursos de Joseph Stálin, batia-se por ideias políticas, falava vigorosamente de Luís Carlos Prestes e pregava a necessidade de praticar não um realismo socialista, mas um realismo social nas artes. No prefácio a um dos livros de Joan Brossa, Em va fer Joan Brossa (1951), ainda não publicado em português, defende essa orientação e afirma que:
Este livro de Joan Brossa reúne os primeiros passos do autor no sentido de realizar uma poesia mais amplamente humana. Mais amplamente humana, ou seja: com o enorme tema dos homens. E não estritamente humana, com os temas de um homem individual, embora sejam os temas da sua sala de jantar, do seu quarto, do seu álcool e de suas máquinas de fugir da realidade. (…) Contrariamente a quase toda a poesia catalã atual, preocupada sempre pelo vocábulo nobre, pouco corrente, erudito e arcaico, era na realidade mais humilde, no léxico de cozinha, de feira, e de fundo de oficina onde Brossa ia buscar o material para elaborar as suas complicadas mitologias. Por isto é compreensível que, ao pressentir a falsidade de toda a sua temática anterior, se tenha colocado cara a cara com este vocabulário concreto seu e, para ele, da realidade de cozinha, de feira e de fundo de oficina, onde a tinha recrutado.
Ao defender uma percepção sua da obra poética, é obvio que o poeta pernambucano acabou revelando muito mais da sua poesia do que da poesia do amigo catalão. No prefácio, está presente a “sala de jantar” que simbolizara, solenemente, a ordem estabelecida nos engenhos. E é notável que a luta para apreender o concreto acontece em oposição à ideia de falsidade, de “complicadas mitologias”, que deveriam ser eliminadas tanto na poesia de Joan Brossa quanto na sua própria. João Cabral de Melo Neto desprezava e repelia as “máquinas de fugir da realidade”, mas defendia a “machine à émouvoir” (máquina de emocionar) de Le Corbusier, trazida em citação na abertura de O engenheiro.
Esse período de forte criação poética e de muita densidade política também é marcado por sua transferência para o Consulado-Geral em Londres, em 1950. A década de 50 caracteriza o modelo de coerência almejado pelo poeta: obra sem engajamento, mas de forte mensagem política e social, voltada para o concreto. E, de cidade em cidade, uma vez superado o processo administrativo, foi ainda transferido para Marselha e, em 1960, para Madri, embora continuasse a viver dentro do Recife. Um Recife de desigualdades, de fome e de mortes provocadas pelo modelo econômico. Mas também, de modo inescapável, um Recife que o acompanha na contemplação, que o faz comparar paisagens e figuras. Por exemplo, no seu período como embaixador em Dacar, escreveu o pequeno e belo poema “O Sol no Senegal”, publicado em Museu de tudo (1978):

Em pelo menos uma entrevista, João Cabral de Melo Neto declarou que o essencial da sua obra fora escrito até 1965. A acreditar no poeta, a sua lição de poesia estaria enfeixada no volume Poesias completas, de 1968, que se abre com o livro então publicado mais recentemente, A educação pela pedra (1966). Talvez seja um tópico de interesse examinar de que modo o golpe militar de 1964 terá interferido na sua produção poética. Não me refiro, aqui, a temas escolhidos ou a protestos subliminares nesse poeta que, também diplomata, foi transferido para Genebra naquele mesmo ano de 1964 e, em 1966, foi servir em Berna, assim alongando sua temporada suíça, enquanto Morte e vida Severina conhecia impactante repercussão a partir da montagem do Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com música de Chico Buarque de Holanda.
Tudo é política, como se diz comumente: máxima repetida pelo pipoqueiro da esquina e pelas autoridades máximas dos poderes constituídos. E assim surgiu Sevilha na biografia de João Cabral de Melo Neto e, mais adiante, na sua poesia: por engenho e arte da política. Encerrado o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do processo contra o diplomata e poeta, o Itamaraty achou por bem transferi-lo para Barcelona – mas com um importante caveat: a missão seria mesmo exercida no Arquivo das Índias, em Sevilha, até mesmo para que o funcionário, voltado para a pesquisa acadêmica, se mantivesse por um tempo fora do ambiente político. O trabalho foi finalmente publicado de 1966, com o título de O arquivo das Índias e o Brasil: documentos para a história do Brasil existentes no Arquivo das Índias de Sevilla.
Na obra poética de João Cabral de Melo Neto, a primeira referência àquela cidade espanhola se encontra, justamente, no poema intitulado “Sevilha”, do livro Quaderna (1960). Poema de dezesseis estrofes de quatro versos cada, do qual cito apenas as duas primeiras:

O poeta faz referência aqui ao sevilhano, “homem pequeno”, mas é razoável interpretar que a cidade espanhola servia bem, no seu tamanho, ao próprio poeta que acabara de ser tratado com justiça. É a ele, portanto, a quem a cidade cabe. E o poeta torna-se íntimo da cidade como se esta não fosse apenas uma roupa, mas um corpo; ou, por vezes, uma casa confortável, que passa a conhecer com intimidade. É também no mesmo poema que se lê a palavra amor: palavra raríssima de se encontrar na poesia de João Cabral de Melo Neto, mas que denuncia, com sua aparição, uma das mais importantes modificações ocorridas em sua obra poética. Em um esquema bem simples, percebe-se logo que o Recife passa a ser a cidade do trabalho e da exploração; Sevilha passa a ser a cidade do corpo e do prazer. Ele escreve:

Sevilha fará brotar uma sensualidade bem arquitetada na poesia de João Cabral de Melo Neto, como se lê, no mesmo livro, no poema “A mulher e a casa”, no qual a casa é o corpo e vice-versa. A cidade inteira se sensualiza – cada praça, cada beco, cada bairro –, fazendo o poeta escrever “A urbanização do Regaço” e ainda “O Regaço urbanizado”, poemas que buscam definir uma totalidade erótica da cidade que o poeta habita, na qual os lugares demonstram “abrigos e íntimos de corpo”, onde nem sempre é possível perceber a fronteira entre estar fora e estar dentro. O regaço é o côncavo que dá abrigo a esse erotismo fora da terra natal, que o poeta descreve com surpreendente engajamento.
Em um ensaio agora antigo sobre o erotismo na poesia de João Cabral de Melo Neto, fiz alusão a uma “paisagem corporal” que caracteriza uma certa dimensão ordenada: um Recife masculino e uma Sevilha feminina. Por um lado, há uma resoluta estruturação em pares opostos: por exemplo, em O cão sem plumas,

Aqui, o Capibaribe fecunda e o Recife se deixa fecundar. Em O rio, o poeta faz notar que as terras de cana,

Já em Paisagens com figuras, no poema “Duas Paisagens”, o poeta, um classificador obcecado, escreveu:

No poema “Na Baixa Andaluzia”, a terra erotizada é como que descrita quase anatomicamente pelo poeta. A Andaluzia é

A demonstração dessa oposição e dessa tensão entre um Recife macho e social e uma Sevilha fêmea e sensual poderia alongar-se aqui. Não sendo o caso, faço apenas duas observações: a primeira, quando a paisagem corporal concebida pelo poeta dá sinais de ambiguidade e exige criatividade de quem classifica, ordena e se vale de todo o racionalismo. É o que acontece no poema “O Engenho Moreno”, publicado em A escola de facas (1980), que, de algum modo, encapsula algumas das preocupações do pernambucano: ali se encontra a indiferença local ao Imperador, denominado de “o manso déspota”, encarnação do poder central. Em visita a Pernambuco, foi-lhe oferecida hospedagem no engenho Moreno, mas não o conchego

Assim agia o poeta, mudando o gênero para mudar o sexo, e atribuindo às terras e aos lugares uma potência erótica capaz de decifrar a identidade do que via e do que sentia.
A segunda observação é de que “não existe na poesia de João Cabral de Melo Neto o erotismo físico, de dois ou mais corpos humanos, nem mesmo comparação à relação concreta entre duas pessoas. Na verdade, o seu erotismo representa bem uma psicologia da composição: é um erotismo que estrutura realidades, que metaforiza corporalmente as realidades corporais”. Esse distanciamento, tão raro em um poeta (que mencionou avaramente a palavra amor, e quase se cala sobre o amor físico) se reduz, contudo, no contexto da cidade de Sevilha. Foi ele, o poeta, capaz de se referir a si mesmo na terceira pessoa, como fez no poema “Despedida de Sevilha”, do livro Crime na calle Relator, para confessar que

Quase sou levado a dizer que muito da poesia cabralina é coisa de circunstância: não propriamente verso de circunstância ou mesmo poesia de circunstância, mas, sim, resultado de uma elaborada reflexão sobre fatos contingentes. O poeta era capaz de tirar lições da arte dos toureiros, de aspectos da arquitetura, da musicalidade do flamenco. Tanto em relação ao Recife quanto à Sevilha, o poeta exibia o seu itinerário pessoal, a sua escolha muito singular de lugares, afetos e acidentes que dizia respeito também à maneira como escrevia, como decidia elaborar um poema. Mas no livro derradeiro do poeta, Sevilha andando (1990), a celebração da cidade espanhola – que, lembremos, serviu de abrigo ao diplomata recém-reintegrado à carreira – extrapolou de um modo de novo acidental. O poeta, que havia até então demonstrado que Sevilha é mulher, passa, a partir de um determinado instante, a revelar que uma certa mulher é Sevilha. Sabem muito bem aqueles que convivem com a poesia de João Cabral de Melo Neto que essa mulher é Marly de Oliveira, que entra na vida do poeta tão logo ele enviúva, e assim fica registrada:

De novo, aparecem os dados precisos, dessa vez sobre a mulher que, pela segunda vez, se casaria com um diplomata: essa mulher que passara a infância e a adolescência na cidade fluminense de Campos, que estudara língua italiana e filologia românica na Universidade de Roma, e que provavelmente nunca tenha conhecido Sevilha. Para o poeta, a mulher passa a ser “A Sevilhana que Não se Sabia”, como se lê o título de um dos poemas dessa fase, segundo uma percepção utópica de “sevilhizar o mundo”, “com todos os sentidos em riste”, por meio de arroubos e confissões, e de minúcias que se encontram incrustadas em muitos versos da derradeira coletânea de poemas. Nunca esteve o poeta tão perto do autobiográfico.
Fecha-se, assim, um percurso circular: o poeta continua a viver no Recife e retorna a Sevilha por meio de uma mulher. É coisa rara que o livro derradeiro de um poeta contenha tamanha energia e impulso, que possa transmitir a lembrança muito vívida de um período passado que se reflete muito no presente. Mas isso aconteceu com João Cabral de Melo, que sempre converteu as cidades que conheceu em seres vivos e singulares. Nós todos, que percorremos e conhecemos essas cidades poéticas, só podemos agradecer.
Muito obrigado.
Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.