* Texto apresentado no 41° Encontro Anual da ANPOCS, realizado entre os dias 23 e 27 de outubro de 2017
Depois do belíssimo texto que José Reginaldo escreveu, ficou muito difícil falar a respeito de Ricardo. Já era difícil, por razões que gostaria de sugerir, e ficou mais ainda, pois Reginaldo encontrou uma tonalidade de discurso que sintetizou de tal modo lembranças e percepções, que embora não diga tudo, diz o que diz de um modo tão feliz, que o que resta torna-se supérfluo ou redundante.
É verdadeiramente uma lição do amigo. E tentarei glosar ao redor dessa ideia. Afinal, a amizade foi um tema de predileção de Ricardo, et pour cause. Reginaldo sintetizou isso também, ao afirmar que Ricardo “era um artista da amizade”.
Sabemos: a amizade é um código simbólico, e permite modalidades de comunicação e experiência que, sem ela, permaneceriam incomunicáveis e inexperienciáveis. Possibilita a formação, diferenciação e compartilhamento de sentimentos.
A consideração, o cuidado e a atenção que Ricardo dedicou às pessoas coloca a sua atuação, sua presença e sua ausência, em um domínio próximo ao da amizade, domínio ao qual amiúde o relacionamento se transladava. Ali ele estava em casa, ali era o seu ambiente, ali ele se encontrava à vontade.
Porque a atenção e o cuidado, a solicitude e o zelo, o empenho e o escrúpulo, o interesse e o gosto, que ele devotava ao outro não cabem no código simbólico que organiza e pauta as comunicações na nossa profissão, e cada vez menos, claro está. Donde, inclusive, uma sensação de extemporaneidade, e até mesmo de espanto, que a sua atuação causava.
Digamos que era intensiva demais para seguir o código simbólico que orienta a comunicação profissional; e intensiva porque se entrega ao outro: às preocupações, temas, questões, dúvidas e assertivas do outro — o que o tornava, como todos sabemos, um comentador, um arguidor, um debatedor absolutamente único. Invariavelmente, todos os depoimentos, lembranças e memórias reiteram essa entrega ao outro e desapego de si.
Seu agir se orientava não pelo seu mundo, mas pelo do outro, e a partir desse posicionamento é que ele mobilizava o seu mundo — um mundo infinitamente diferenciado, fruto de suas leituras infindas — para o outro. Algo que, diga-se de passagem, aproxima a amizade do amor: daí ser a amizade de Ricardo uma amizade amorosa.
Ao menos desde Montaigne, sabemos: no amigo temos um complemento, ele nós dá algo que nos falta, ele é um “outro eu”.
Brincando e abusando da etimologia, via Benveniste, poderia dizer que Ricardo é senhor na casa do conhecimento e jamais deixa de exercer seus deveres de hospitalidade, inclusive nos presenteando com… saber.
Isso pode se encaixar com o zigue-zague: Marcelo formulou muito bem, e é não somente um modo de pensar, uma articulação de ideias, mas essa capacidade que tanto e sempre nos assombra, e que ele aprendeu, sim, com o seu Simmel: pensar com as ideias nas mãos, revirando-as sem parar, em um movimento infindo e sempre renovado, tecendo relações sobre relações, mise en abyme, zigue-zague.
Sua lição, a lição do amigo, desperta gratidão. É curioso que essa ligação de gratidão e amizade não tenha sido explorada por um dos autores prediletos de Ricardo, Georg Simmel, uma vez que este abordou, em separado, ambas.
Agora que Ricardo se foi, resta-nos lembrança e gratidão, aquela — nas palavras de Simmel — “permanência ideal de uma relação, mesmo quando ela já há muito se rompeu e o ato de dar e receber tenha se concluído.” Essa lição do amigo, entretanto, não se esgota e não perece: assume agora novas formas, entra em nova fase, e passa a viver em seus textos e em sua lembrança, sempre ao nosso alcance. E, através deles, emerge sempre, e nítida, visível, palpável, a figura de Ricardo, cujo modo de pensar, formular e escrever sempre foi tão seu, tão único e inimitável, tão, agora: nosso.
Um tesouro que agora nos cabe cuidar e compartilhar.
Muito obrigado!
Referências Bibliográficas:
BENVENISTE, Émile. O vocabulário das instituições indo-européias. Campinas: Unicamp, 1995, vol. 1.
GONCALVES, J. R. “Um amigo do mundo”. Sociologia & Antropologia, vol.7, nº 2, 2017.
SIMMEL, Georg. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung. Leipzig: Duncker & Humblot, 1908.