“RUPTURA E TRADIÇÃO: UMA LITERATURA NOS TRÓPICOS 40 ANOS. ENTREVISTA COM SILVIANO SANTIAGO”

Foto de Cláudio Nadalin

Ruptura e tradição: Uma literatura nos trópicos 40 anos

Entrevista com Silviano Santiago

Por Andre Bittencourt (COC/Fiocruz) e Maurício Hoelz (UFRJ)

A entrevista inédita com Silviano Santiago que agora apresentamos ao leitor foi realizada por e-mail como parte das comemorações que dão origem ao seminário “Uma literatura nos trópicos 40 anos: dependência cultural e cosmopolitismo do pobre” (UFRJ/UNICAMP/UFMG). Nela, Silviano nos oferece um rico relato das circunstâncias de publicação e recepção da obra, e também de suas interlocuções, tanto nos meios intelectuais quanto artísticos. Podemos lê-la, assim, como uma espécie de behind the scenes do livro. Nesse sentido, acompanham a entrevista dois raros ensaios que constariam em uma primeira versão do livro (que se chamaria originalmente Ruptura e tradição): A Palavra de Deus, publicado na revista Barroco em 1971, e Iracema: Alegoria e palavra, originalmente publicado na Luso-Brazilian Review em 1965. Completa o material o contrato assinado da obra que nunca chegou a existir. Todos esses documentos foram gentilmente cedidos pelo próprio Silviano Santiago, a quem reiteramos nossos agradecimentos aqui.

Uma literatura nos trópicos, que agora completa 40 anos, foi livro seminal dos chamados “estudos culturais” na América Latina. Para começo de conversa, gostaríamos de saber o que o levou à decisão de publicar essa coletânea e quais os critérios para a escolha dos ensaios. Além disso, você poderia rememorar o contexto geral de publicação do livro?

Na verdade, o livro que se publica em 1978 tem uma versão anterior, intitulada Ruptura e tradição (Ensaio sobre o romance brasileiro do século XIX), organizada ao final dos anos 1960. Como eu perdera o contato com as editoras brasileiras, o colega Heitor Martins encaminhou os originais do livro a amigo dele, o poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos, então Diretor técnico da Editora do Conselho Estadual de Cultura (São Paulo). Ruptura e tradição foi analisado e aceito para publicação pelo Conselho. Assinei contrato em 1970 (ver abaixo). O livro nunca foi publicado. Não sei nem imagino o motivo. A primeira versão não comportava o ensaio inicial, “O entre-lugar do discurso latino-americano”, escrito em 1971, e toda a segunda parte da edição de 1978, dedicada a contemporâneos meus. Reunia ensaios meus sobre vários romances brasileiros, escritos nos anos 1960 e publicados em revistas especializadas norte-americanas. Nela também estava o “Jano, Janeiro”, em que estudo os primeiros trabalhos literários de Machado de Assis. Deixei de lado o ensaio “Camões e Drummond: A Máquina do mundo”, por tratar de poesia. Por se tratar de teatro, lá não está a leitura que faço da peça de Jorge Andrade, A moratória, primeiro ensaio em português publicado na tradicional revista PMLA (revista da Modern Languages Association).



Uso a palavra ruptura no sentido de transgressão ao cânone, e me movimento teoricamente no sentido de retorno à ideia de vanguarda modernista e concreta, à semelhança do que fará Octavio Paz em Os filhos do barro (1974), criando o paradoxo tradição da vanguarda. Evidentemente, em 1970 ainda não assumo uma perspectiva latino-americana da literatura brasileira.

Regresso definitivamente ao Brasil em 1974. Depois de ter publicado os dois últimos trabalhos feitos no Brasil, o ensaio derridiano sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade (Vozes, 1975) e o Glossário de Derrida (Francisco Alves, 1976), decido novamente reunir os textos de Tradição e ruptura, associando-os aos ensaios que escrevi sobre a cultura pop brasileira em 1972, ano que passei como visitante na PUC-Rio.

No Rio de Janeiro, não conseguia editora para a publicação de Uma literatura nos trópicos (título que adoto para a antiga coleção de ensaios). Sábato Magaldi disse-me que poderia levar o manuscrito para o professor Jacó Guinsburg, responsável pela Editora Perspectiva. Aceitaram publicá-lo, sem direitos autorais. Ou melhor, teria os direitos autorais pagos em livros. Sai publicado em 1978. Desde então, não toquei no livro.

Retomo Tradição e ruptura. Nos anos 1960 e na passagem para os anos 1970, consigo atar duas pontas da minha formação. A formação em literatura francesa que venho aprimorando desde a segunda metade dos anos 1950 e a formação nas literaturas brasileira e portuguesa, que advém – já que me julgo autodidata na matéria – do meu próprio esforço em preparar sucessivas aulas sobre as disciplinas.

Com a ajuda generosíssima do meu orientador, professor Pierre Moreau, termino às escondidas nos Estados Unidos minha tese de doutorado sobre André Gide, que vinha escrevendo desde 1961. Defendo-a na Sorbonne em abril de 1968. Tendo em mãos o cobiçado título, posso candidatar-me ao ensino da literatura francesa no país em que trabalho. Sou contratado como Associate Professor em literatura francesa pela State University of New York at Buffalo.

Por outro lado, os ensaios são o resultado das aulas que, entre 1962 e 1968, preparo para o Departamento de Espanhol e Português, da University of New Mexico (Albuquerque) e da Rutgers University (New Jersey).

Dois cursos obrigatórios no currículo de Literatura em língua portuguesa nas duas universidades foram importantíssimos para mim. Tinha o nome genérico de “Survey of literature” e seria o correspondente dos cursos de história da literatura, então comuns no Brasil. Neles, e no caso do “survey” em brasileira, tendia a associar – com vistas a uma leitura da literatura brasileira no século 19 − uma visão não etnocêntrica da Carta, de Pero Vaz de Caminha, aos manifestos de vanguarda modernista dos anos 1920, em particular os de Oswald de Andrade.

Associava colônia e modernidade para analisar o que já caracterizava como pós-colonial, sem a ajuda do conceito de “independência”, no sentido estreito. A atitude advinha da minha estada em Paris como bolsista em 1961, quando tive acesso ao pensamento e às obras dos africanos. Destaco como exemplos opostos da minha atitude o ensaio A Palavra de Deus, publicado na revista Barroco (Belo Horizonte, n. 3, p. 7-13), em 1971, reproduzido na plaquete de Buffalo em 1971, e o ensaio Iracema: Alegoria e palavra (de 1963, que não consta de Uma literatura nos trópicos por sugestão de colega).

Em “A palavra de Deus”, busco analisar como o código linguístico (a língua portuguesa) se associa ao código religioso (a catequese cristã) para entender do ponto de vista pós-colonial o texto inaugural da nossa cultura. Em “Iracema”, interesso-me, entre outras questões, pela criação de palavras em tupi-guarani, aproximando-a das propostas joycianas então divulgadas pelos poetas concretos.

Destaco na Carta a palavra semente, na expressão semen est verbum Dei (a semente é o verbo de Deus) para mostrar como é uma metáfora que estrutura o conhecimento da terra descoberta. Ela articula dois pontos altos do texto: a mente indígena tinha de ser como tabula rasa para poder acolher totalmente a palavra de Deus, e a terra tinha de ser ubérrima para justificar a total desclassificação da agricultura como atividade. A metáfora da semente será retomada em textos tão importantes da nossa literatura como o Sermão da sexagésima, de Antonio Vieira, ou Iracema, de Alencar. A semente metafórica é textual e ‘realisticamente’ soberana, destronando a semente, no sentido literal, e já configura a alta taxa de metaforização que será dominante no discurso cultural brasileiro, traço só criticado por Lima Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma (v. ensaio “Uma ferroada na ponta do pé”, em Vale quanto pesa).

O questionamento do etnocentrismo no discurso da cultura brasileira – já presente na versão do livro de 1970 – veio embasado inicialmente por leitura cuidadosa de Tristes trópicos, de Lévi-Strauss (1955) e, a partir de 1968, o será pelo ensaio “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, de Jacques Derrida, em A escritura e a diferença (1967). A passagem de Tristes trópicos a A escritura e a diferença ajuda a explicar a diferença entre a reunião dos meus ensaios em Tradição e ruptura e em Uma literatura nos trópicos.

A nota original recai evidentemente sobre o ensaio “O entre-lugar da literatura latino-americana”, de 1971, que abre a edição de 1978. Se me permitem etiquetas, o pós-colonialismo que vinha caminhando desde Albuquerque encontra em Buffalo o pós-estruturalismo.

Minha conversa em 1971 com Jacques Derrida, na Johns Hopkins University, aonde vou porque edito um número da revista Modern Languages Notes sobre Greimas, tem por principal tema suas críticas a Lévi-Strauss. O francês estava evidentemente interessado em escutar o brasileiro. E vice-versa.

“O entre-lugar do discurso latino-americano” foi apresentado em francês (1971) e publicado em inglês (1973) (no Canadá e nos Estados Unidos, respectivamente) antes de ser compilado em português em Uma literatura nos trópicos. Você se lembra se houve diferenças notáveis na reação ao seu ensaio nesses três diferentes contextos? Houve um momento específico, ainda que mais tarde, em que você se deu conta de que esse ensaio começava a fazer fortuna na crítica?

Na Université de Montréal, a primeira reação foi bastante calorosa. Eu era o terceiro lecturer num evento organizado pelo professor Eugenio Donato, então professor em Buffalo e visitante por um ano no Québec. Fui antecedido por Michel Foucault e René Girard.

Lembre-se, o Canadá francês passava então por um período bem problemático, posterior à Expo 67, em Montreal. Lembre-se, o general De Gaulle tinha exclamado: Vive le Québec libre! e um canadense de origem francesa era primeiro ministro da nação. Os universitários sentiam na pele a dependência ao Canadá inglês e a rejeição da língua francesa como não sendo mais a nacional. Lembro que esta curta passagem do texto foi bem entendida e aplaudida: “Evitar o bilinguismo significa evitar o pluralismo religioso e significa também impor o poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua”. Não tenho o pendor oratório, confesso que o tive naquela noite.

Dois alunos meus, Steve Moscov e Judith Mayne (posteriormente, uma das críticas de cinema mais importantes da academia norte-americana) traduziram o texto francês ao inglês e o amigo e professor Albie Michaels o publicou numa plaquete do Latin American Studies Center, juntamente com outros textos curtos meus. A apresentação da plaquete foi escrita por um jovem colega meu, especialista no século 18 francês, Thomas Kavanagh, hoje Augustus R. Street Professor of French, na Yale University. A reação foi menos calorosa à publicação em inglês.

Por um lado, os norte-americanos tinham acabado de receber o pensamento estruturalista e pós-estruturalista e tentavam se adentrar pelas novas ideias multidisciplinares (o que não é tarefa fácil, como se sabe) e, por outro, os especialistas em brasileira, de quem tinha me distanciado, ressentiam do fato de que queria incorporar à literatura hispano-americana a brasileira, deixando de lado a velha parceira, a lusitana. No entanto, por própria sugestão do Eugenio Donato, dei um curso teórico na pós-graduação do departamento de francês, a que pertencia, sobre as literaturas que estavam sendo e continuariam a ser nomeadas como francófonas. Foi um seminário original em termos norte-americanos, pois a ênfase então era em teoria strictu sensu ou em clássicos ou contemporâneos da literatura francesa (outros seminários que ofereci foram sobre o nouveau Roman, destaque para Robbe-Grillet, e a obra romanesca de Sartre).

No Brasil, em 1978, o ensaio passou quase despercebido. Não tanto o livro como um todo. Ainda não tinham sido bem introduzidos no Brasil os pensadores pós-estruturalistas franceses e Jacques Derrida, como se sabe, era objeto de piadas de intelectuais do porte de José Guilherme Merquior e Carlos Nelson Coutinho. As piadas eram centradas em torno da expressão “o estruturalismo dos pobres”. Ganharam algum destaque na crítica a leitura dos romances, em particular o de Machado, e os textos sobre a cultura pop.

Um crítico como Wilson Martins meteu o pau no livro. Eis o título do rodapé publicado em O Jornal do Brasil: “Assim falava Derrida…”. Em ensaio publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, Merquior se divertiu bastante com o uso da palavra escritura como tradução para écriture, esquecendo-se de que o conceito, de responsabilidade dum pensador argelino de origem judaica, poderia ser abonado em português por escritura. Por outro lado, os pós-graduandos brasileiros atravessavam um período em que se exigia – em particular na dissertação ou na tese – uma escrita científica. Meu estilo ensaístico – e sem notas de pé de página, até hoje reclamadas pela querida Beatriz Resende − era por demais incômodo. Devo dizer que evitei ao máximo expor as ideias do livro em sala de aula. Para dizer a verdade, à época da publicação do livro pela Perspectiva, já me distanciava e me adentrava pelos temas que então me interessavam e me interessariam posteriormente: manifestos literários europeus e brasileiros, a poesia de Drummond, o messianismo (de Euclides da Cunha a Glauber Rocha), autobiografia e memórias (Drummond, Murilo e Nava), correspondência (em particular, Mário de Andrade), e assim por diante.

Ainda sobre o “O entre-lugar do discurso latino-americano”, nos parece um título muito feliz ao ampliar para além do Brasil (que, lembremos, já foi pensado enquanto uma “ilha imensa” por Eduardo Prado) um mesmo conjunto de problemas para o crítico da cultura, sobretudo alinhavado pela experiência colonial. A discussão de autores e obras de nossos vizinhos ganharia ainda mais fôlego em seus trabalhos posteriores – para ficarmos em um exemplo, sua incursão na obra de Octavio Paz. Você poderia falar um pouco sobre como se dava o seu diálogo com o pensamento latino-americano naquele momento, seja nos Estados Unidos, seja em sua volta ao Brasil?

Na UFMG, tive a sorte de ter um mestre em literatura espanhola, o professor José Carlos Lisboa (irmão da poeta Henriqueta Lisboa). Nos dois anos em que fui seu aluno (1957-58), ganho autonomia como leitor da literatura escrita em castelhano. Entre 1962 e 1964, ensino na Universidade do Novo México, em Albuquerque. Tínhamos vários períodos relativamente longos de férias. Aproveito quase todos em viagens de ônibus pelo México. Ficava dois dias numa cidade, viajava para a próxima, ficava dois dias… No início, tendo vindo de Paris, carregava comigo Los tarahumaras, de Antonin Artaud. Esses índios mexicanos moravam ao lado de onde estava, em Chihuahua. Depois, passei a comprar livros de autores mexicanos modernos e contemporâneos. Eram bem baratos, publicados pelo Fondo de Cultura Económica.

Passei em revista o romance da revolução mexicana (gostei em particular de Los de abajo) e os contemporâneos, entre eles Carlos Fuentes e Juan Rulfo, e posteriormente jovens, como José Agustín, que vim a conhecer pessoalmente. Comecei a me interessar também por romances que posteriormente seriam enquadrados como testimonio. Refiro-me, por exemplo, ao extraordinário e relativamente desconhecido Juan Perez Jolote, do antropólogo Ricardo Pozas. Aqui pela América do Sul, ainda nos anos 1950, Alexandre Eulálio tinha me aplicado doses maciças de Jorge Luis Borges. Retomo a leitura de Borges em 1965, quando me torno amigo de Luiz Mario Schneider. Naquele momento, já em Rutgers, adentro-me como posso pelo boom do romance hispano. Os autores são muito conhecidos de todos. Não há que citá-los.

Entre 1962 e 1968, faço parte de departamento em que se ensinavam as literaturas em espanhol e as literaturas em português. Tenho contatos e conversas constantes com os professores como também com os inumeráveis e ilustríssimos visitantes. Nem menciono os simpósios nacionais e locais em que as várias literaturas neolatinas eram discutidas.

Em suma, minha estada de pouco mais de dez anos nos Estados Unidos ofereceu-me um campo bem amplo de informação e de leitura, que está na base dos meus escritos ensaísticos, poéticos e ficcionais. Já no Brasil, havia e há uma moda de não querer considerar a literatura brasileira como parte da literatura hispano-americana. Ainda por sorte minha, nos anos 1990, aproximei-me de Florencia Garramuño, que tem feito um trabalho pioneiro e excelente na Argentina.

Cerca de metade dos artigos de Uma literatura nos trópicos trata diretamente de jovens escritores e artistas que estavam produzindo naquele momento do início dos anos 1970 (a maior parte dos ensaios é de 1973) e alguns deles, como Caetano Veloso ou Sérgio Sant’Anna, não eram muito mais moços do que você. Enquanto crítico e professor universitário, você se percebia como compartilhando a “sensibilidade” daquela geração que analisava? Chegava a haver um espaço de sociabilidade entre você e aqueles artistas?

Herdo da juventude belo-horizontina o dom da sociabilidade entre pares. No CEC, cineclube da cidade, os jovens críticos de cinema Maurício Gomes Leite e Flávio Pinto Vieira compartilhamos literatura com Ezequiel Neves, Ivan Ângelo…, teatro com Carlos Kroeber, João Marchner, Jota Dangelo…, artes plásticas com Frederico Morais, Wilma Martins, Chanina…, balé com Klaus Viana, Angel, Sigrid Hermanny… Formávamos um grupo orgânico, responsável pela Revista de cinema, por um lado, e pela revista Complemento, por outro. Juntos, gozávamos a boemia dos anos 1950.

Minha ida para a universidade norte-americana apenas transforma a sociabilidade boêmia em sociabilidade acadêmica. No entanto, tão logo deixo a província novo-mexicana e vou ensinar ao lado de Nova York, em Rutgers, a sociabilidade boêmia volta. Logo começam a chegar velhos amigos do Brasil, como o Neville de Almeida e o Agostinho de Carvalho, ao mesmo tempo em que me associo ao Luis Mario Schneider e a uma série de artistas hispano-americanos que passam pela cidade e o visitam. Com ele, viajo duas vezes ao México, onde conheço pessoalmente as principais figuras da cultura e da arte mexicana.

A sociabilidade se estica a um grau internacional quando, em 1960, vou ensinar literatura francesa em Buffalo. Aproximo-me de grandes figuras europeias, como René Girard, Eugenio Donato, Michel Foucault, Michel Serres, Jacques Derrida, Greimas, etc. Por outro lado, num departamento bem importante da universidade, mil vezes mais importante do que a seção de literatura brasileira, tenho a possibilidade de me valer do orçamento acadêmico para atividades artísticas. Tudo o que não pude fazer do Brasil enquanto professor de brasileira pude fazer enquanto professor de francesa. Com a ajuda do professor Francisco Pabon, do Puerto Rican Studies Center, e do professor de matemática, o paulista Ubiratan d’Ambrosio, levamos a Buffalo o Teatro de Arena (elenco original completo), Glauber Rocha e Hélio Oiticica, para não mencionar o fato de que Abdias do Nascimento assina contrato como professor da universidade, onde virá a se aposentar.

Sem dúvida, se a base do meu relacionamento acadêmico era Buffalo, a base do meu relacionamento social com artistas continuava a ser Nova York. Conhecer Hélio Oiticica foi uma bênção. Conversar com ele e participar de reuniões no seu apartamento, uma maravilha. Como que volto à juventude belo-horizontina. Ampliei um bom conhecimento que já tinha dos artistas hispano-americanos e franceses com os que chegavam do Brasil pela razão que todos conhecem.

Meu destino foi ser um erudito acadêmico com sensibilidade (para retomar sua palavra) de artista. Pseudo lá e cá – aos olhos de muita gente de lá e de cá. Não foi fácil levar no Brasil essa vida esquizofrênica e desvalorizada. Muita gente ainda não me julga bom pesquisador… Os donos da objetividade do saber não gostam do meu trabalho artístico com o fato histórico e do meu trabalho ensaístico com a arte. Um amigo de boa índole como o Waly Salomão, que conheci em casa do Hélio, passa a me considerar um professorzinho. A expressão não é desabonadora, tampouco simpática. É o que significa frente ao erudito e à sensibilidade. Acrescento que tanto minha ensaística quanto minha criação literária levam algum tempo para começar a ser bem consideradas não só pelos leitores como também pelos acadêmicos.

Há um dado no meu currículo que me escapa completamente. Apesar de manco das duas pernas, sempre fui bem recebido em países estrangeiros e na imprensa e, não sendo autor de boa vendagem, mereci sucessivos prêmios. Entenda-se.

A divisão em duas partes de Uma literatura nos trópicos obedeceu, portanto, a esse duplo desequilíbrio. No início, leituras rigorosas (assim julgo eu) de obras já clássicas da literatura brasileira. Entra em cena o peso da cultura na avaliação da literatura. Ao final, leituras coladas a estranhos objetos que são nomeados pela primeira vez como dignos da atenção dos críticos. Entra em cena o peso do corpo como motor da escrita, no sentido semiológico da palavra. Na qualidade de suplemento, trabalho uma longa divagação sobre o estatuto teórico do que é colonizado no momento em adquire foros de originalidade. O entre lugar.

Notas:

[1] O autor esclarece que o título original foi depois invertido para Tradição e ruptura. [N.E.]

 

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