No post de hoje, o Blog da BVPS retoma as atividades da coluna Interpretações do Brasil e poéticas, organizada pelo nosso editor-assistente Lucas van Hombeeck, doutorando em sociologia no PPGSA-IFCS/UFRJ. A seção estreou com o texto A educação pela prática da linguagem: uma chance pedagógico-filológica na poesia de João Cabral de Melo Neto e na filosofia de Paulo Freire, por Rafael Zacca, e conta hoje com Facções gráfico-visuais na disputa pelo Brasil, por Pollyana Quintella. Pollyana colabora com pesquisa e curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR) e é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ.
No texto, a autora reconstrói brevemente o contexto das disputas em torno da poesia experimental e de vanguarda no Brasil a partir da década de 1950 nas tensões estabelecidas entre concretismo, crítica literária e o sistema das artes visuais. Em seguida, explora as iniciativas Poema/Processo e afins, como o grupo Dés ou a Revista Brouhaha, em sua tarefa de descentramento do experimental brasileiro e reconfiguração da relação local-global pela poesia. Por fim, faz uma leitura cerrada do poema visual “1822”, de Nei Leandro, em perspectiva com as questões da dependência cultural e das diferenças regionais levantadas ao longo do texto.
Lembramos às leitoras e leitores do Blog que “Interpretações do Brasil e poéticas” é nossa quarta coluna, ao lado de “Interpretações do Brasil e política”, coordenada por Leonardo Belinelli (USP), “Interpretações do Brasil e musicalidades”, sob a coordenação de Pedro Cazes (CPII e IESP/UERJ) e “Arte e sociedade”, com curadoria de Sabrina Parracho Sant’Anna (UFRRJ).
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Boa leitura!
Facções gráfico-visuais na disputa pelo Brasil
por Pollyana Quintella [i]
para Vinicius Melo
O poeta Augusto de Campos, em entrevista à Folha de São Paulo, em 2006, afirmou que o advento da poesia concreta nos anos 1950 deixou o mundo literário “traumatizado” [1]. Ele se referia à recepção nada animadora que a vanguarda recebeu na esfera pública brasileira. Campos lembra reações como a de Lêdo Ivo, que afirmou que o grupo precisava de “um bom curso primário”, ou mesmo José Lins do Rego, que disse que os poetas precisavam de “um banho de burrice”. O grupo (o trio) sabia que a ruptura nos paradigmas de produção, se ambicionasse conquistar um espaço notável para si, exigiria esforços que vão além da poética autoral: crítica, tradução e novas formas de circulação.
É bastante conhecido o plano de guerra acionado pelo grupo: textos e manifestos entre o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo e o Correio Paulistano, evocando nomes como Pound, Joyce, Cummings, Mallarmé, Maiakóvski, e Apollinaire, entre outras referências que funcionaram como respaldos internacionais para a sua experimentação. A tática acabou operando com uma finalidade específica: tais nomes deveriam culminar nos feitos da própria poesia concreta, poesia de linha de chegada da História, algo que Roberto Schwarz chamou de “confusão entre teoria e autopropaganda”, espécie de armadilha essencial das vanguardas.
Se o meio literário apresentava desconfiança em relação a essa novidade, o diálogo seria mais amistoso nas artes visuais, onde os poetas encontraram espaço para expor junto a artistas em exposições coletivas, como no caso da I Exposição de Arte Concreta, em 1956. Além disso, a criação da Bienal de São Paulo anos antes, em 1951, havia colaborado expressivamente para legitimar e autorizar a produção concreta no Brasil, intensificando o diálogo com o debate estético internacional.
Mas era preciso disputar também o campo literário, e enquanto o trio paulista tinha o desejo de diminuir o “atraso” brasileiro em relação a atuação internacional, aliados à ideologia desenvolvimentista do período, a crítica literária centrava-se num discurso voltado para a formação de um sistema literário no Brasil, sobretudo com a atuação de Antonio Candido. É nesse cenário que os concretistas assumem embates diversos, tanto na querela Oswald versus Mário, quanto na publicação O sequestro do Barroco, em que Haroldo criticou a ausência de Gregório de Mattos e de Antônio Vieira no grande ensaio de Candido.
Naqueles anos 1950, a crítica literária queria conhecer o Brasil, e os concretos, por sua vez, queriam que o Brasil conhecesse o mundo. Como a atuação nos jornais já explicitava, o que estava em jogo era assumir uma perspectiva mais cosmopolita, inserindo o país no jogo de referências internacionais, além de resgatar e enquadrar determinadas obras na narrativa literária brasileira. Se fossem exitosos, talvez conseguissem um feito ainda maior, produzir uma poesia de exportação, como queria o Oswald de 1924. No entanto, o desejo de construir um novo cânone e alcançar as massas foi revelando-se uma espécie de fetiche burguês, com procedimentos que falavam cada vez mais para si mesmos. Em Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, Heloisa Buarque de Hollanda identifica que a suposta ingenuidade desenvolvimentista do grupo seria reapropriada mais adiante pelo tropicalismo, já ciente do processo inerente da dependência cultural brasileira. A Tropicália contribuiria com o desejo do movimento de reinserir o legado oswaldiano no centro da produção cultural, embora com vocações próprias. Mas, além dela, ainda no campo poético, havia o desdobramento do Poema/Processo, relegado à periferia da história.
DISSIDÊNCIA OFUSCADA
A partir de 1966, o Poema/Processo, iniciado pelo trabalho de Wlademir Dias-Pino, seria responsável por descentralizar a produção da poesia experimental no Brasil, pulverizando a prática por estados como Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Bahia, Santa Catarina, Pernambuco e Espírito Santo. Apesar disso, o movimento ainda hoje não parece ser levado suficientemente a sério.
Seria preciso investigar as razões dessa marginalização. A prática experimental naqueles anos é tão intensa que por vezes não sabemos demarcar as diferenças entre poesia e artes visuais. É o caso, por exemplo, das passeatas do Poema/Processo, em Natal, das iniciativas de Paulo Bruscky e Daniel Santiago, no Recife, e dos Domingos da Criação ou do Arte no Aterro, no Rio de Janeiro. Fronteiras embaralhadas, limites questionados. Mas essa contaminação, se permitiu uma experimentação radical, por outro lado criou algumas confusões. Por exemplo, o fato do Poema/Processo ser mais bem recebido no meio das artes visuais – ainda que não suficientemente – parece sugerir que o movimento é estrangeiro aos estudos literários.
Surgido concomitantemente à Tropicália, o Poema/Processo também desejava levar o projeto concreto além. Não mais o privilégio do papel, mas a compreensão do poema em sentido amplo: acontecimento, performance, objeto, filme. A palavra é entendida como código puro, e o “processo” compreendido como aquilo que transforma o poema no decorrer de seu consumo, na maneira de operá-lo. Por isso, o grupo privilegia o poema em detrimento da poesia: “Não há poesia processo. O que há é o poema/processo, porque quem encerra o processo é o poema”, diria Wlademir Dias-Pino. Era a radicalização do concretismo paulista. Moacy Cirne, líder do movimento em Natal, diria em 1975, que o poema/processo “não é uma mera ou simples continuação do concretismo: o poema/processo é uma continuidade radical, implicando desdobramentos semiológicos próprios, de uma das direções da poesia concreta”.
O caso nordestino é peculiar. Se por um lado seus integrantes assumiram uma suposta radicalização dos procedimentos experimentais herdados pelos paulistas, por outro, seu discurso parece adquirir um posicionamento divergente quanto ao desenraizamento ambicionado pelo concretismo. A dissidência não está tão explícita nos poemas, mas ganha contorno nos textos teóricos. No manifesto potiguar Por uma Poesia Revolucionária, Formal e Tematicamente, o grupo Dés declarava seu intento, atualizando a pesquisa em perspectiva regional:
Faremos uma poesia voltada para a concretude informacional e para a problemática da terra e do homem nordestino: uma poesia de vanguarda socialmente engajada – uma poesia capaz de agredir e violentar, partindo de elementos críticos, superando-os formalmente.
Para a circulação dessas ideias, o movimento encontrou espaço na Revista de Cultura Vozes, e fundou também seu suplemento próprio, a Revista Ponto 1 e 2, chamada de Revista de poemas de processo, e a revista Processo 1. Em Natal, havia ainda a Revista Brouhaha, vinculada à Universidade. Mas o diferencial do grupo nordestino foi o trabalho realizado com cartilhas didáticas, compostas de textos e poemas concretos que eram distribuídos pelas escolas públicas do interior. O grupo firmou ainda parceria com o Diretório Central de Estudantes da Universidade do Estado e realizou uma série de exposições sobre poesia de vanguarda, percorrendo diversas faculdades com cursos sobre poesia experimental.
Outro formato herdado da Poesia Concreta foram as exposições. Em 1966, o grupo Dés faria a primeira mostra de poesia concreta realizada em Natal, na Galeria de Arte do Município, expondo poemas de sua autoria ao lado de nomes de São Paulo e do Rio de Janeiro. A exposição acontecia paralelamente à outra mostra no Rio de Janeiro, com poetas de nove estados diferentes. É o momento de expansão da poesia experimental, não mais restrita ao eixo Rio-São Paulo. Vejamos um exemplo de poema apresentado nas duas exposições históricas, o 1822, de Nei Leandro.
1822 é considerado um dos marcos iniciais do poema/processo potiguar. Nei Leandro recorre à colagem, e compõe o ano histórico a partir de um conjunto de marcas e logotipos estrangeiros que ganhavam cada vez mais força naquele final dos anos 1960 no Brasil. Segundo as diretrizes do Poema/Processo, o sentido do poema se constitui no próprio modo de sua composição, já que 1822 não são apenas números ou data histórica, mas forma visual a partir de fragmentos. E as palavras também não aparecem de maneira tradicional, mas são apropriações já deslocadas de seu sentido original. O gesto do poeta é reformular as informações veiculadas pela propaganda, seu repertório é o slogan, o signo visual.
Ironicamente, a presença das marcas Esso, Ford, Philips, Coca-cola, Mobil, entre outras, tem a intenção de tecer um comentário crítico sobre o ano que o país conquistou sua suposta independência, segundo a história oficial. Nei Leandro questiona a promessa de uma autonomia que nunca chegou. E, mais do que isso, ao produzir fora dos eixos centrais do país, reflete sobre o papel da vanguarda em sua conjuntura. Não se trata apenas do Brasil oitocentista dependente de dinâmicas externas, mas também do Brasil dos anos 1960, e ainda, numa terceira camada, da produção vanguardista do Nordeste, em relação aos pólos do Rio e de São Paulo. Tensões entre o dentro e o fora; centro e periferia; a cultura brasileira e as influências estrangeiras; dependência e autonomia; atraso e desenvolvimento; aqui, ali e lá. Neste caso, a inquietação não se apresenta apenas no motor das obras, como no caso de 1822, mas num esforço maior: a disputa por narrativas que intencionam enraizar ou não a arte brasileira, circunscrevê-la nalgum território. Quem conta a história da poesia experimental no Brasil? E segundo que parâmetros?
Os amplos esforços dos concretistas paulistas culminaram no reconhecimento da contribuição teórica do movimento, por vezes tida como maior do que a contribuição poética. No entanto, pareceram canonizar uma produção específica, o que nos deixa sequelas ainda hoje. A contrapelo, um fenômeno recente que merece atenção é o resgate do Poema/Processo e da obra de Wlademir Dias-Pino, por exemplo, no meio das artes visuais. É o caso da exposição O poema infinito de Wlademir Dias-Pino (2016), com curadoria de Evandro Salles, no Museu de Arte do Rio (MAR); a inclusão significativa da produção do poeta na 32 Bienal de São Paulo (2016); e a publicação de Poema/Processo: uma vanguarda semiológica (2017), organizada por Gustavo Nóbrega e publicada pela Galeria Superfície.
O movimento vem sendo reconhecido pela resposta alternativa que apresentou à narrativa concreta e tropicalista, com a proposição de uma outra racionalidade, embora a vertente nordestina ainda não tenha recebido a atenção devida. Nos parece, entretanto, que o adensamento desses estudos ainda está por ser feito, e que a troca entre disciplinas distintas poderá estabelecer um debate com mais fôlego. Sem dúvida, o que não nos falta é trabalho.
Notas
[i] Pollyana Quintella é curadora, professora e pesquisadora independente. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre o crítico Mário Pedrosa. Colabora com pesquisa e curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR), desde 2018, e escreve para diversos jornais e revistas de cultura.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1609200607.htm
As imagens que ilustram o post são
Nei Leandro, 1822 (1966)
Foto da I Exposição Nacional do Poema/ Processo, ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial), Rio de Janeiro, 1967, com exibição de 1822, de Nei Leandro.
* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.