
No post de hoje, o Blog da BVPS publica texto do antropólogo Paulo Augusto Franco de Alcântara sobre os diários de Raymundo Faoro (1925-2003). Ao longo do ensaio realizamos um passeio pela escrita, pelas leituras e pelas inquietações que povoavam o ainda jovem autor. Essas questões são analisadas em diálogo com teorias sobre os diversos gêneros da escrita de si, procurando alinhavar tanto a particularidade dos diários de Raymundo Faoro quanto as condições histórico-culturais às quais o autor e seus escritos se ligavam.
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Boa leitura!
Um ateliê de si. Notas preliminares sobre os diários de Raymundo, Porto Alegre (1943 a 1946)
Paulo Augusto Franco de Alcântara[i]
Destrua após escrever!
No senso comum, os diários íntimos deveriam ser destruídos após a escrita. O seu conteúdo, normalmente em intenção secreta e confessional, é registro e domínio pessoal de quem escreve: idealmente intransferível, inviolável e impublicável. Mas os volumes que vemos acima não tiveram esse destino. Muito pelo contrário. A fotografia mostra cadernos cuidadosamente conservados e que, desse modo, sobreviveram em bom estado por décadas. O bom acabamento dado por seu escritor – quem detém, por efeito, as memórias estruturadas na aparência de um livro (objeto) – revela, potencialmente, um desejo de (auto)arquivamento.
O título nas lombadas, no padrão tipográfico, sugere que se trataria de objetos pensados e manuseados nesse intuito pessoal. Diante das páginas enumeradas progressivamente e manuscritas à caneta, percebo um capricho com a organização e a caligrafia; uma atenção à pauta, às margens e aos parágrafos. A escrita é sempre datada e o local é assinalado, denotando serem esses cadernos um produto de ações metódicas e recorrentes do escritor.
De partida, encontro trechos transcritos, observações e análises sobre leituras realizadas pelo escritor: romances, filosofia e sociologia. São comuns descrições e interpretações sobre fatos da vida cotidiana que deixam revelar, mesmo que de maneira discreta, alguns traços de sua subjetividade. Nada mais característico a um diário, conforme escreveu Philippe Lejeune (2009: 195), do que fazer dele um refúgio íntimo no qual o escritor fará exames sobre o cotidiano vivido, construindo memórias de forma a prevenir o esquecimento. No entanto, os fatos narrados não se sucedem, necessariamente, em ordem cronológica vivida, como ditam as convenções sobre esse tipo de escrita. Ao contrário, são fatos aparentemente selecionados com cuidado e dispostos textualmente pelo escritor de modo a cumprir uma relação de consistência e coesão com aquela bibliografia manuseada.
A linguagem usada pelo escritor é, por vezes, rebuscada e fruto, muito provavelmente, de processos elaborados de escolhas. O planejamento e o polimento dão a impressão de que o escritor escreve para ser lido a posteriori, talvez, naquele momento, elegendo um interlocutor imaginário. Contextualmente, essa escrita revela uma experiência que pode ser lida como excepcional num Brasil, em 1940, intensamente marcado por desigualdades no acesso à educação formal – em especial associadas à raça e gênero -, onde, mais da metade da população com idade acima dos 15 anos era classificada como analfabeta. Algumas poucas rasuras, finalmente, permitem enxergar o “erro” ou as “correções” por detrás dos riscos. Algumas poucas páginas foram rasgadas.
Todas essas características, novamente, fogem ao senso comum sobre o gênero diário para o qual a redação seria simples e direta. O fato de estarem preservados (portanto, nunca destruídos) desde os anos 1940, década de sua escrita, não significa, para mim, qualquer obstáculo no que diz respeito à interpretação deste gênero de escrita enquanto ‘diários pessoais’ (uma certa modalidade ou estilo canônico literário). Pelo contrário, o torna um problema interessante para a investigação que proponho realizar.

Esse corpo documental é formado por 20 volumes classificados de A à Z contendo, aproximadamente, 6.800 páginas datadas no período de 1943 a 1952. Soma-se a esse grupo um caderno escrito em 1952 e 1953 cujo objetivo, segundo o escritor, foi um ‘esforço de memória’ para reprodução do que ele julgava ser as ‘melhores páginas’ dos vinte volumes que, naquela ocasião, acreditara ter perdido em sua mudança entre Porto Alegre e o Rio de Janeiro. Claro, foi apenas um susto. Como se vê, de fato, esses diários foram escritos para sobreviverem[ii].
Neste ensaio, esboço, em intuito preliminar, algumas notas sobre a autoria, o contexto e as referências sob as quais os primeiros três volumes desses diários teriam sido escritos. Pretendo, com isso, conhecer as primeiras intenções que teriam alicerceado essa escrita cotidiana e que vão, como veremos, compondo um arquivo de si com traços muito particulares, mas também tributários aos padrões da época. Interesso-me, especialmente, pelas condições histórico-culturais que teriam orbitado a produção desses diários definindo-os, na perspectiva de seu escritor, enquanto um gênero da escrita de si.
Raymundo, Porto Alegre e a escrita de si (1943 a 1946)
Esses diários foram escritos por Raymundo Faoro (1925 – 2003), conhecido intérprete do Brasil, autor, entre outros, do influente “Os donos do poder. Formação do Patronato Político Brasileiro”, publicado pela primeira vez em 1958. Mas, no período desses diários, quinze anos antes, Raymundo era um jovem que recém deixara a vida numa pequena cidade do interior para estudar na capital de outro estado do Brasil. Por isso, escolho, neste artigo, tratá-lo por seu primeiro nome, no intuito de marcar e compreender o meu lugar de interlocução com o sujeito anônimo no passado, que assim se sentia na ‘fria realidade” da capital e do mundo.
Na data da primeira entrada dos diários, em julho de 1943, aos 18 anos de idade, Raymundo já vivia há dois anos na cidade de Porto Alegre onde preparava-se para o ingresso na Faculdade de Direito, que ocorrera em 1944[iii] na mesma cidade. Tratava-se de um jovem homem que trazia consigo uma imagem idealizada sobre a capital: cosmopolita e de intensa vida intelectual: onde ‘todos deveriam conhecer a obra de Balzac’. Na escrita, essa idealização surge em contraste à outra construção: a pequena cidade de Caçador, um ‘interior mal iluminado’ onde ele morara com a família.
Na chegada da família Faoro, em 1931, a população de Caçador, no interior oeste do estado de Santa Catarina, região do Contestado, não tinha acesso à energia elétrica. Foi o pai de Raymundo, Atílio Faoro, quem construiu a primeira usina hidrelétrica às margens do Rio do Peixe, em 1932 (Cabral, 2020: 15). Até então, pequenos comerciantes, antes agricultores descendentes de italianos baseados em Vacaria, no Rio Grande do Sul, a família fazia a sua sobrevivência material por meio de um armazém onde vendiam “secos e molhados” e, nos anos seguintes, ferragens. Nos diários, no entanto, a ‘má iluminação’ é menos uma observação literal sobre a falta de energia elétrica e mais uma crítica à limitada vida intelectual local que parecia não ser o bastante para o jovem com pretensões maiores – crítica da qual Porto Alegre também fará parte na sequência.
Pela frente, o sonho da cidade, cidade como contrafigura do interior mal iluminado, sem comunicação com ninguém e sem possibilidade de ter convívios de espírito (1952).
Mesmo ‘mal iluminada’, Raymundo narra uma Caçador favorável, no tempo da infância, ao seu gosto pelo mundo das letras. Seu pai, Atílio, é lembrado no diário de 1952 como um ‘amante da inteligência e da política’. Dona Albina, professora de literatura, foi quem mais teria colaborado para o desenvolvimento de sua ‘vocação de escritor’. Sobre o contexto, Raymundo faz questão de se autodeclarar um leitor assíduo; que aos 10 anos de idade já era chamado de ‘filósofo’ pela classe e aos 13 lia Voltaire. No Ginásio Aurora, referência regional no ensino, Raymundo teria vivido o que chamou de uma ‘febre da leitura’ com “Os Três Mosqueteiros” de Alexandre Dumas entre os vários romances nacionais e internacionais que também teria acessado com interesse.
Na escrita da memória, a breve caracterização da infância e da juventude em Caçador parece ter um objetivo: autorreferenciar a sua precocidade e talento intelectual. Talvez seja por isso que a mãe Luiza e os irmãos não tenham sido figurados naquele momento dos diários: figuras sem uma relação direta com esse intuito.


Porto Alegre vinha, desde a década de 1920, passando por intensas transformações nos espaços públicos, na vida cultural e nas formas de sociabilidade. A capital, tida como um dos principais centros industriais do país, vivia um clima de otimismo econômico com o fim da Segunda Guerra Mundial e com o processo de redemocratização após o Estado Novo[iv]. As construções se verticalizavam, as avenidas centrais eram alargadas a partir de padrões de uniformização idealmente construídos para a transmissão de uma imagem monumentalizada sobre o progresso (Pesavento, 1991: 71).
Os canteiros de obras conviviam com demolições, especialmente, daqueles sobrados patriarcais observados por Gilberto Freyre em visita que fez à cidade em 1941: a “sedentariedade urbana” em relação de profilaxia com os espaços urbanos em crescimento (Freyre, 1946: 12-13). Essas transformações expulsavam as classes populares do centro para os arrabaldes (Monteiro, 1995), enfatizando, às margens – e distante do hotel onde Raymundo morava como mensalista -, as desigualdades assinaladas por marcadores de classe e raça na capital e no Brasil.
Sob o ponto de vista de Raymundo em seus diários, essas transformações sociais baseavam-se, especialmente, no declínio das aristocracias rurais e na emergência da burguesia urbana frequentadora da vida noturna dos bailes e festas, no Clube do Comércio, no Jockey, no Yatch clube, nas sessões de cinema. Esta tradução seletiva da realidade foi inspirada não só naquilo que vivia na cidade, mas também pela relação com o que lia nos livros. O escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) e suas respectivas obras “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”, por exemplo, mesmo em contextos tão diferentes, foi uma inspiração determinante para Raymundo construir uma análise possível sobre a emergente condição liberal-burguesa. Seguindo o escritor, Raymundo descreve personagens locais como exemplares processos, homens e mulheres imersas na obstinação pelo dinheiro, em vidas ociosas, em casamentos por interesse material e na vida religiosa como ‘instrumento prático para refrear paixões’.
Os homens estudam e lêm o suficiente para a profissão e o fazem, em regra, bem. Fora disso, alguma leitura fugaz do romance da moda e um pouco de Eça e Machado. O resto das horas do dia, ocupam-se na ociosidade dos matinés, dos namôros, das festas na casa de fulano ou beltrano. As mulheres, essas sim, devoram tôda a torrente de livros que a moda impõe. Romances quase sempre forjados com engenhoso enrêdo. Daí o fato de por vezes notar-se a fluência para escrever de muitas moças. Sorveram-na nos inúmeros romances que leram sempre às pressas. (16 de maio de 1946).
Desde meados da década de 1920 os restritos círculos intelectuais, alguns bastante interessados no modernismo, procuravam representar, em periódicos locais, a cidade como espaço da novidade, sincronizando a vida cultural local com os centros cosmopolitas (Ramos & Golin, 2007, 108)[v]. Todos homens – jornalistas, escritores e políticos provenientes das classes médias e altas – viam e faziam-se vistos entre a Rua da Praia, o Largo do Medeiros e o Parque da Redenção. Por lá eram divulgadas a Revista Província de São Pedro (1945-1957)[vi] e a Revista do Globo (1929-1967) – periódico quinzenal dirigido, a partir de 1932, pelo escritor Érico Veríssimo (1905-1975). A revista misturava literatura, teatro, moda, propaganda e acontecimentos sociais e políticos da sociedade local. Mário Quintana (1906-1994) foi seu colaborador desde 1930, vindo a se tornar tradutor da Seção Editora do Grupo Globo.
A Livraria do Globo, onde Raymundo comprara parte de seus cadernos e o exemplar de “Guerra e Paz”, tornava-se, em 1942, uma das principais editoras brasileiras (Bertraso, 1993). Além de Tolstói, a editora publicou na época, entre outros, versões traduzidas das obras de James Joyce, Virginia Woolf, Thomas Mann e Aldous Huxley – estes dois últimos, lidos e comentados por Raymundo em seus diários. O primeiro volume de “A Comédia Humana” de Balzac chegava em 1946[vii]. Entre os estudantes e intelectuais da época, além das primeiras traduções de clássicos da literatura mundial, circulavam traduções em espanhol dos principais pensadores alemães (Faoro & Santos Júnior 2009:102). Nietzsche, Hermann von Keyserling, Max Weber, Ferdinand Tönnies e, principalmente, Max Scheler estavam entre os prediletos de Raymundo e aparecem repetidamente nos diários.
Em Porto Alegre, Raymundo encontrava, ao invés daquela imagem por ele idealizada, ‘homens mais preocupados com o trabalho e com o dinheiro’. No seu aniversário de 21 anos de idade, Raymundo faz uma breve retrospectiva de sua trajetória até então, embasando-se, em partes, nos escritos do filósofo Keyserling:
Um fato decisivo da minha formação foi a vinda para Pôrto Alegre. Cheio de orgulho pueril, com armas fracas mas ousadas, pretendia reinar neste solo, para mim até então, fulgurante e futuroso. Cêdo porém, cêdo demais comecei a constatar o abismo entre os meus sonhos e a fria realidade que transpirava a capital gaúcha. E o resultado foi dúplice: tomei-me da negra descrença para com o Rio Grande e sua gente e se me revelou a prisão telúrica em que me encontrava, com relação a Sta. Catarina. Compreendi que toda a minha fôrça vinha desta, compreendi a natureza de rã, com pretensões voadoras, a que estava confinado. O estado de espírito resultante desse choque ainda me é familiar. Aliás, esse é o drama exclusivamente telúrico, como muito bem o compreende Keyserling (27 de abril de 1946)
Keyserling era, na época, um autor celebrado entre alguns círculos intelectuais brasileiros, incluindo Mário de Andrade e Oswald de Andrade[viii]. Circulavam os seus diários de viagem nos quais, por meio de interpretações um tanto quanto exotizantes e etnocêntricas sobre diversos povos e suas diferenças culturais, usava o relato de suas experiências pessoais para refletir sobre o “tempo acelerado” da modernidade e a “decadência do ocidente”. Em seus diários, Keyserling, muito diferente daquilo que o cânone estabelece sobre o gênero, faz questão de elevar seus dotes intelectuais, até mesmo “dramatizando-os”, como o próprio autor sugere na introdução ao volume I (Von Keyserling, 1925).
A empolgação de Raymundo com Keyserling se deu, especialmente, diante da proposta de aproximar a filosofia da vida cotidiana. A escrita dos diários, provavelmente, era uma ferramenta para o desenvolvimento dessa ideia. Ademais, esses diários de viagem provavelmente representaram para Raymundo um alargamento das possibilidades do gênero literário. Antes tido como escrita “impublicável” (Lejeune, 2009: 226), agora, bastante polido e até possivelmente reescrito, tornava-se parte integrante da obra publicada de um intelectual que admirava.
Sinto-me em falta com a disciplina que me impuz em relação a este caderno: escrever uma página, pelo menos, ao dia. Essa medida visa um duplo objetivo: 1) ser uma higiene, vasando aqui as angústias e ressentimentos e 2) fazer deste caderno um “atelier” de onde sairão trabalhos futuro. E a “conditio sine qua non” para cumprir o desideratum proposto é a constância de voltar sempre a estas páginas, confessando-me, penitenciando-me, relatando as decepções e entusiasmos, enfim, tudo o que interessar à minha personalidade. (7 de maio de 1946)
Posso, desse modo, imaginar esses diários como um locus de onde Raymundo, um tanto quanto decepcionado, observava, solitário, a sociedade porto-alegrense, num exercício de desabafo ou de higiene. Mas também, como um “arquivamento de si” (Artières, 1998), ele não só fez gravitar alguns fatos cuidadosamente selecionados de sua observação sobre o cotidiano local e as leituras, construiu esse arquivo como, em suas palavras, um atelier que parecia misturar registros de seu processo criativo e a formação de uma ‘personalidade’ ou, posso dizer, de uma autoimagem intelectualmente positiva. Confirma isso o fato de que os relatos sobre os acontecimentos cotidianos do escritor surgem sempre na relação de complementaridade e consistência com a literatura manipulada. Não se pode precisar exatamente onde termina a construção intelectual e onde começa a pessoa.
Essa atitude de Raymundo nada tinha de extraordinária na época. Na Europa, por exemplo, o diário foi dos gêneros literários mais expressivos da modernidade: um hábito e um estilo de escrita capaz de enfatizar a certeza da personalidade e do indivíduo moderno supostamente existente em si, em oposição às soluções generalizantes até então prevalecentes. Como uma “escrita de si”, nos termos de Foucault (1983), a escrita de Raymundo confunde-se, muitas vezes, com a própria constituição de sua subjetividade. Altamente marcados por testemunhos, a escrita dos diários é, além de tudo, em suas palavras, uma ‘tradução da personalidade’: escrita e escritor se constituem dialeticamente.
Compreendo agora que escrever bem não é ajustar com engenho as palavras de sorte a conseguir hábeis efeitos estéticos. Escrever bem é alguma coisa de mais profundo: consiste em traduzir as emoções e pensamentos que se referem à personalidade, mesmo que disso resulta um estilo formalmente medíocre. Mas, conseguido isto, uma cousa está assegurada e é a tradução da personalidade, mesmo com seus defeitos e vícios. (23 de maio de 1946).
No Brasil da primeira metade do século XX os gêneros baseados em narrativas sobre si – como os diários pessoais – parecem ter caído nas graças de jovens homens de classes altas e médias com aspirações políticas e intelectuais. Como atestam as metodologias empregadas em duas das mais importantes teses sobre a formação dos intelectuais brasileiros (Adorno, 2019; Miceli, 2001), a escrita e o arquivamento de diários e autobiografias eram comuns. Como lembra Botelho (2012), no contexto do memorialismo brasileiro, tais peças configuram um “patrimônio pessoal” de cunho celebratório das histórias de vida de seus proeminentes autores: escritores, políticos e bacharéis.
Vale lembrar alguns casos emblemáticos. D. Pedro II (1925-1891), por exemplo, esculpiu em seus diários, com detalhes, a imagem pública e dual a que se pretendia: o governante e o intelectual. É difícil notar, nesse caso, como aponta Schwarcz (1998), onde termina a história e onde se inicia a fala mítica da memória. Joaquim Nabuco (1849-1910), das personalidades mais famosas do movimento abolicionista brasileiro e referência para Raymundo no estudo do direito, mostrava que os diários não compõem um gênero unívoco (Mello, 2006). Mais ainda, parte deles, como suspeitou Alonso (2006), pode ser resultado de lapidações baseadas em motivações autobiográficas e ideológicas. No caso de Getulio Vargas (1882-1954), o conteúdo do diário, com poucas referências à vida estritamente pessoal, revela a intenção de construção de sua imagem de chefe de Estado para a posterioridade, mesmo tendo ele mencionado que escrevia “para si mesmo, e não para o público” (Vargas, 1995). Vargas, aliás, bacharelou-se em direito na mesma faculdade onde Raymundo ingressava naquele momento, 38 anos antes.
Além do já mencionado caso de Keyserling e de outras possíveis referências indiretas, os diários escritos pelo escritor francês André Gide (1869-1951) tornam-se influência decisiva para Raymundo a partir de 1946.
Lendo o “journal” de Gide chama-me atenção, principalmente, sua extraordinária dedicação à arte. (…) E isso pesa-me profundamente, pois, tenho sempre em vista a comparação comigo e, tristemente, noto a leviandade que me cerca. Sinto-me em formação e tenho a impressão que isso é uma desculpa sorrateira do meu espírito. Desculpa para não levar a efeito os trabalhos que … molemente, entre bocejos e preguiças, nestas páginas. (13 de maio e 1946).
Mais uma vez, Raymundo tinha em mãos uma publicação dos diários pessoais de um escritor renomado. Conforme Laura Freixas (1996), no prólogo que fez ao livro de Gide, trata-se de um diário construído para ser parte integrante da obra literária do autor. Gide demonstra ser artista consciente do legado que pretende deixar, selecionando, conformando e, possivelmente, até reescrevendo, de modo muito coerente, os fatos, traços e estilos que teriam definido a sua escrita no tempo. Nessa dimensão, o diário torna-se mais próximo do gênero autobiográfico nos termos de Lejeune (2009: 226).
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Com isso, o meu objetivo neste ensaio não é enquadrar os diários de Raymundo num modelo, muito menos propor classificação estanque. Antes, pretendo demonstrar que a escrita e os textos são sempre versões contextuais: ao mesmo tempo produtos, interferem na produção de convenções culturais (Cunha, 2005: 12; Barton & Papen, 2010: 06). Nesse sentido, a escrita de Raymundo apresenta fatos sobre sua vida, assim como sugere outras intenções com essa prática cotidiana de testemunhar e constituir a si mesmo. Potencialmente, revela também indícios para a compreensão sobre o contexto da época em que viveu: a cidade de Porto Alegre, os padrões da intelectualidade e a formação do campo do pensamento social no Brasil.
A escrita de Raymundo – como toda escritura – é resultado de construções repletas de significados, valores, ambiguidades e contradições vividas; trata-se de produtos dinâmicos de reflexões, hesitações, seleções e edições que nem sempre aparecem explícitas na ordem literal do texto tal qual o acessamos. Como diz a antropóloga Karin Barber (2007: 03), um texto (oral e escrito) é constituído de muitas ações, as quais não devem ser vistas como “estados puros da subjetividade” da pessoa que escreve. Não se trata de gravitações ou traduções isomórficas ou subjetivistas sobre o “real”, tampouco serão meras falsificações. As “ficções” presentes nesse arquivo memorial, conforme a historiadora Natalie Davis (1987), seriam elementos próprios da criação textual do escritor em relação com as convenções vigentes no seu tempo.
No caminho e nos entremeios do texto, o Raymundo que mais aparece é aquele auto-representado como um intelectual em formação. Nessa intenção, mais até do que buscar nos cadernos um refúgio diante da capital que encontrara, ele realiza um arquivamento de si, selecionando, fixando, e concedendo sentido às próprias experiências que vivia dentro e fora dos livros. Raymundo constrói, inspirado por outros pensadores, um atelier de literatura potencial que também é atelier de si, isto é, um locus de experimentação e constituição de sua autoimagem ou de sua ‘personalidade’ em motivos intelectuais. Ele edifica, assim, uma resposta intimista a um gênero próprio e diversificado que resulta da escrita de si. Esta arquitetura é, também, como parece claro em seu contexto, um requisito cultural para aqueles que pretendiam acessar com distinção (e usufruir dos poderes que daí advêm) o conflitivo mundo das ideias que orientam as práticas sociais cotidianas.
Referências
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[i] Doutor em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). Esta pesquisa associada a este ensaio é inteiramente financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O texto tal como se apresenta não teria sido possível sem as leituras e sugestões de Lilia Moritz Schwarcz, supervisora desta pesquisa a quem agradeço especialmente. Agradeço também os colegas do grupo Etno-história pelas críticas indispensáveis, em especial, a Larissa Nadai e Marília Ariza, companheiras constantes. Agradeço ao grupo de trabalho Pensamento Social no Brasil, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais nas pessoas de André Botelho, Simone Meucci, Maurício Hoelz e Paulo Guérios. Agradeço a Jess Reia e Fernando Rabossi, a Nathanael Araújo e a Gustavo Elpes pelas leituras generosas e excelentes sugestões.
[ii] Adotarei aspas simples (‘) nas transcrições dos diários do autor; aspas duplas (“) para menções a outras obras ou a expressões a serem problematizadas; e itálico (i) para categorias que são elaboradas pelo escritor/interlocutor.
[iii] Faculdade Livre de Direito, fundada em Porto Alegre em 1900. A partir de 1934 a faculdade passa a fazer parte da Universidade de Porto Alegre, e em 1950 à Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[iv] Ao longo da década de 1940, o país testemunha o fim do Estado Novo e o início do governo Eurico Gaspar Dutra. No Rio Grande do Sul, o governo dos interventores federais da ditadura Varguista é substituído por governadores provenientes dos recém-criados PSD (Partido Social Democrático) e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).
[v] Experiência exemplar foi a Revista Madrugada, periódico criado por um grupo de jovens advindos das classes média e alta da sociedade local. O periódico, apesar de declarada relação com a vanguarda modernista da época, adotou um tom conciliário, configurando uma representação eclética e pouco radical do que ocorria em meados dos anos 20: simbolismo, regionalismo e construção da cidade burguesa (Ramos; Golin 2007, 112).
[vi] Na Revista Província de São Pedro, dirigida por Moysés Vellinho (1902-1980, nas palavras de Raymundo, ‘medalhão’ da vida intelectual local, foram publicados, entre outros, os gaúchos Simões Lopes Neto, Darcy Azambuja, Augusto Meyer e Veríssimo. Na cena nacional, a revista fez circular, ainda, textos de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e dos mineiros Murilo Rubião e Guimarães Rosa (Salvaro, 1990).
[vii] Na Globo foram publicadas cerca de 1.063 obras, entre as quais Castro Alves, Coelho Neto, Olavo Bilac, Machado de Assis, Mário de Andrade e Jorge de Lima (Martins Filho & Pavão, 2003: 07).
[viii] Nos diários de viagem de Keryserling é possível encontrar o projeto maior do autor: apontar a necessidade de formação de uma elite intelectual baseada numa ideia aristocrática de cosmopolitismo. Autor da moda na época, Keyserling teria sido lido com entusiasmo, por exemplo, por Mário de Andrade e Oswald de Andrade (Faria, 2013). Mário também se subscreveu ao gênero diários de viagem com o seu “Turista Aprendiz” (2015).