O Blog da BVPS divulga a publicação em formato digital, aberto e gratuito de Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (7letras, 1999), de Denilson Lopes. Além disso, veiculamos também o texto de arguição da tese de doutorado que deu origem ao livro, por Silviano Santiago, membro da banca de avaliação e autor da orelha da edição acima.
Sobre o projeto do livro, Denilson escreve:
O desejo inicial era escrever uma história da melancolia mas acabou ficando restrita a um diálogo da melancolia numa perspectiva, em grande parte mas não só, benjaminiana com o Neo-Barroco e como ele poderia ser interessante para ler filmes de alguns cineastas (Visconti, Satyajit Ray, Orson Welles, Resnais) e alguns romances de decadência de famílias patriarcais de Cornelio Penna, Lucio Cardoso e Autran Dourado. Escrevi o livro para talvez fazer um acerto de contas com meu passado juvenil como gótico mas vejo que a melancolia, como uma sensibilidade definida pela dificuldade de esquecer, foi o primeiro afeto menor pelo que me interessei, definidor de um olhar estético, atento aos detalhes e as fugacidades.
Arguição de Nós os mortos (tese de doutorado)
por Silviano Santiago
Já que você começou a sua tese por um advérbio que expressa dúvida (“Talvez”), seguido por três frases sem verbo, por uma série de definições metafóricas do objeto de estudo (“A melancolia é uma pérola, um cristal, uma senha…”) e por uma rápida e incisiva digressão autobiográfica onde, como num romance, é instaurado um narrador em primeira pessoa que se contextualizará definitivamente à p. 158, permita-me pois que comece esta nossa conversa de hoje por uma comparação, a fim de estabelecer um indispensável protocolo de leitura do seu inteligente, instigante, multifacetado e desconcertante trabalho acadêmico. Eis a comparação. Aparentemente, “Nós os mortos” é um texto erudito, de fôlego, semelhante a uma corrida de maratona. Na verdade, é um texto de empolgação, mais semelhante a sucessivas corridas de 100 metros com barreiras. Explico-me.
Aparentemente, o leitor da sua tese também teria de ter fôlego e muitíssimas e variadíssimas leituras, leitor que fosse capaz de ir acompanhando, sem perder resistência e paciência, uma escrita crítica cheia de citações teóricas e de exemplos concretos tomados a obras de arte, cheia de complicadíssimas alusões a vários períodos da história sócio-cultural e econômica, recobrindo diferentes artes, como a literatura, o cinema, a música, o teatro, etc., capaz de ir acompanhando o desenrolar de um texto fluido, veloz e fogueteiro para finalmente julgar se, aqui e ali, a palavra crítica não fraqueja, não esmorece, se aqui e ali o passo analítico-interpretativo não segue o melhor e mais rentável traçado, se aqui e ali o corpo já exausto dos sucessivos parágrafos percorridos não começa a se valer, do ponto de vista dos juizes da corrida, de recursos um tanto ao quanto escusos numa tese de doutorado, – em suma, aparentemente o seu texto requer um companheiro de leitura (como se dizia antigamente un compagnon de route) que estaria a priori sendo confrontado e esmagado por uma bibliografia que, mesmo “não se pretende[ndo] exaustiva” (palavras suas), recobre 33 páginas (sim, a bibliografia vai das pp. 247 a 280), 33 páginas datilografadas em espaço 1. Não contei, mas sua bibliografia vai fácil fácil além dos 500 títulos.
No entanto, esse maratonista leitor (e por maratonista leitor entendo aquele que tem fôlego livresco para destrinchar as muitíssimas citações e alusões teóricas e para compreender as milhares de micro-análises interpretativas de obras artísticas dos vários quadrantes, aquele que tem resistência para se desdobrar por todas as páginas a fim de julgar se todos esses “enxertos” [greffes], no sentido que lhe empresta Jacques Derrida, são feitos de maneira a dar novas combinações botânicas que, por sua vez, nos darão frutos de saber saudáveis e não espúrios), esse maratonista leitor é logo logo decepcionado pelo narrador da tese. A decepção do leitor, como no melhor da ficção moderna, é o forte da retórica de Nós os mortos. Tomo, como exemplo dessa situação, a passagem mais evidente do seu trabalho (p. 247).
A curta passagem vem antes da sua maratonesca bibliografia. Passo por cima de pequenos detalhes que causam apreensão no leitor (por exemplo “ [os] livros [desta bibliografia foram] lidos intensamente, outros em parte folheados, reduzidos a uma citação ou simples mote para um outro pensar, uma dica”), passo por cima da apreensão e vou direto à frase decepcionante por excelência, que pode servir de exemplo do modo como o maratonista leitor é nocauteado nos primeiros dez metros da sua tese: “As citações, mesmo quando aspeadas, foram adaptadas à pertinência do texto, seja do ponto de vista gramatical, seja do ponto de vista do sentido, sem uma preocupação com fidelidade ao texto [de origem]”.
Ao final dos dez primeiros metros, o maratonista leitor que saiu para correr e vencer uma corrida de fundo livresca, competir com o narrador, se dá conta de que, mal o corpo se lança, é transformado num corredor de 100 metros com barreiras que, pressente, terá de correr e vencer sucessivas e curtas corridas com obstáculos sem nunca poder competir com o narrador. Pergunta ele, pergunto eu ao narrador em primeira pessoa da tese: O que devo entender por citação? seria sobretudo o que está à p. 33? Qual a serventia das aspas no texto da tese? para que usá-las como sinalização se não indicam fidelidade ao outro? em se tratando de trabalho de “scholarship”, o que devo entender por fidelidade textual? Qual a diferença entre um texto lido intensamente e um texto folheado? devem ter eles o mesmo valor, ou seja, o mesmo estatuto epistemológico? Como interpretar o “tédio” que o narrador diz sentir “pelo que os outros fazem, pensam” (p. 33)? O que devo entender por uma citação que é, não alicerce do trabalho, mas “mote para o outro pensar”, “dica” para o leitor? como julgar a leitura rapidamente esquecida e que se mistura com o pensamento do narrador ou, mais complicado, que se mistura com o que os outros pensam através dele (p. 33)? Como devo ler um texto excessivamente erudito – uma tese de doutorado em Sociologia – que, como uma gulosa “deep throat”, só se interessa pela sua própria pertinência e não pela pertinência dos outros textos que a substantivam?
A moldura das possíveis respostas às perguntas do maratonista leitor, erudito e decepcionado, é desenhada inicialmente na p. 2, quando o narrador estabelece uma homologia entre ele próprio e os sobreviventes dos anos 70. Com a ajuda de Foucault, o narrador diz que “nossa experiência do mundo é menos a de uma longa vida se desenvolvendo pelo tempo do que uma rede que conecta pontos”. Tanto sobrevivente quanto narrador são e querem ser jovens mortos e, por isso, não podem mais se valer de uma lógica discursiva que se desenvolve através de regras de convencimento desenvolvidas em obediência à flecha do tempo, não podem se valer, segundo as palavras da tese, “da fluidez do texto em parágrafos” (p. 20). Vale-se o narrador de aforismos subjetivos, de fragmentos interpretativos e de digressões teóricas, que se espalham em simultaneidade pelas mais de 200 páginas, como nós numa teia de aranha. Nós os mortos não vive da intensidade calculada e convincente de um narrador enredado e se enredando mais nas malhas do tempo (passando por um processo gradativo do que se chamou de amadurecimento, de interiorização do saber no romance de formação do século XIX). A tese tal como se apresenta e dramatiza no espaço fragmentário uma passageira empolgação melancólica (o paradoxo se impõe porque a alegria no texto é a da pulsão de morte) arquitetada pelo narrador a partir dos pressupostos levantados pela escrita subjetiva e narcisista (v. citação de Forster, p. 156) dos sobreviventes dos anos 70. O narrador odeia escrever textos longos; tudo por que ele se interessa pode ser dito em 10 páginas (p. 171). Continuo citando o narrador: afirma ele que a questão maior da tese “está em como é possível compreender o mundo em que vivo”, para em seguida perguntar “com qual passado, tradição dialogo?” Lida a tese, pergunto-me se a identificação do narrador com herdeiros e príncipes (p. 69, p. 237) não acabou por fazer o raciocínio teórico deslizar inexoravelmente para o eurocêntrico, apesar de algumas ressalvas aqui e ali (pp. 84 e 131), ou de mecanismos de autodefesa (pp. 99-100), ou até mesmo quando ele se faz esconder por detrás do corpus brasileiro analisado (Cornélio, Lúcio, Autran).
No ritmo textual do aforismo, do fragmento e da digressão, no ritmo do corre-salta-pára-descansa, o narrador da tese sustenta que não se deve tomar distância do objeto de estudo (reparem no pronome nós do título), que escreve para estar colado a ele, objeto, unha-e-carne, como se diz, e talvez seja por isso que ele, narrador, acredite que não precisa apresentar ao leitor, como convém, as obras de arte micro-interpretadas ou a bibliografia em que vai envolvê-las. Ainda por isso é que pode escrever que “um elemento periférico me interessa mais do que as teses centrais de um livro” (p. 191). O leitor da tese – já agora parte do pronome nós do título – deve conhecer a priori as obras interpretadas, acatar o corte parcial nelas feito e a bibliografia pertinente para que não escape das malhas textuais.
Mas se o leitor se quiser outro (diferente dos que se deixam compreender pelo pronome nós do título, ou seja diferente dos personagens melancólicos, alegorizados, como está à p. 69), se quiser evitar a barreira do a priori da pertinência do texto e se quiser dizer a ele, narrador, que conhece tão bem quanto ele, ou até melhor, as obras interpretadas e a bibliografia, não vai poder se intrometer criticamente na conversa porque vai decepcionar a ele, narrador, e este já lhe tinha dito que não quer ser decepcionado. O leitor outro (diferente do pronome nós do título, repito) terá que ou decepcionar o narrador, fazendo-lhe perguntas e colocando questões que a priori ele julgou impertinentes, ou terá de se alimentar da decepção que lhe é imposta como rito de iniciação.
O narrador da tese é autorreferenciável, a narrativa é autorreferenciável. Sob o risco de causar decepção a cada linha, sob o risco de se adentrar por um diálogo de surdos, o leitor não tem opção: ele terá a sua palavra constantemente balizada pela autorreferencialidade do narrador. O pronome nós do título da tese se traduz literalmente por nós, o substantivo, geracionais (v. p. 63). Não se abre espaço para o amadurecimento, para a interiorização do saber, é preciso saber “desmaturizar”, para usar o neologismo de Bachelard. O narrador é um “eterno adolescente” (p. 52)? Se a crítica-escritura não é uma simples ego trip, como o narrador decreta na p. 96, não será ela uma complexa ego trip, mesmo levando em consideração as ponderações antiacadêmicas expressas às pp. 115/116?
Assim sendo, eu leitor fui sendo empurrado, na pista de corrida da página (ou seja no silêncio pensante posterior a cada aforismo ou a cada fragmento ou a cada digressão) para a reflexão companheira, conivente. Nem herdeiro nem príncipe, sou herdeiro e príncipe, como o narrador, – somos da mesma estirpe. Entre um aforismo subjetivo e outro, entre um fragmento interpretativo e outro, entre uma digressão teórica e outra, o silêncio do branco que nos (já incorporei o meu eu ao pronome nós do título) vai convidando a solavancos interpretativos também fragmentados e parciais.
Caso qualquer leitor insista em ler Nós os mortos como maratonista, ele não sobreviverá aos constantes e sucessivos curtos-circuitos que, pela sua intervenção mal educada de erudito paciente, irá estabelecendo no sistema implantado. Ou todos estamos no circuito, ou todos não sobreviveremos aos curtos-circuitos afetivos e emocionais. A melancolia foi tomada na tese não como tema objetivo extraído de textos teóricos e de obras artísticas, mas como matéria para um narrador em primeira pessoa escrever uma prosa ficcional erudita. Para evitar o suicídio da estirpe dos melancólicos, exige-se a autocontemplação estilizada dos pares. “Ficarei indefinidamente contemplando/ meu retrato eu morto”, escreveu o jovem João Cabral. A pulsão de morte do narrador neutraliza a pulsão de vida do leitor. Nós os mortos. “O que somos sem essa pedagogia da morte?” o narrador pergunta à p. 12. Como não podemos ser eruditos pacientes, teremos de ser a toda e qualquer página pacientes eruditos.
Assim é que, durante a leitura desta tese escrita no Departamento de Sociologia, não deve o maratonista leitor procurar nas páginas iniciais (porque ele não a vai encontrar), não deve exigir (porque ele vai se decepcionar) uma metodologia de trabalho precisa, objetiva e científica, condizente com o chamado trabalho de tese disciplinar. Avulta-se antes a expressão duma espécie de “sensibilidade”, para usar a sua palavra (pp. 27/28), avulta-se antes uma poética, não no sentido que lhe emprestam Aristóteles ou Horácio, mas no sentido fixado pelos manifestos literários programáticos da vanguarda dos anos 20, como os manifestos Dadá; retomo: avulta-se uma poética também difusa e fragmentada, que será desenvolvida, não nas páginas introdutórias, como é de praxe, mas ao longo de toda a tese. Como não terei tempo para levantar a totalidade dessa poética, apenas assinalo as páginas mais importantes para a sua compreensão: um primeiro e pequeno conjunto: pp. 16, 32, 96, etc.; um segundo e mais denso conjunto: pp. 20, 49. 86, 107, 116, 171, 191, 210, 242. Acrescento em parênteses que não comentarei a qualidade da sintaxe (p. 42, por exemplo) ou o estilo do narrador (p. 59, por exemplo). Dou isso como problema grave, mas perfeitamente justificável em virtude de o trabalho ter sido redigido no estrangeiro. Apenas sugiro, ainda neste parênteses, uma vírgula no título. A gramática a recomenda e também a leitura polissêmica do vocábulo nós. Fecho o parênteses.
Os primeiros traços firmes da poética surgem na p. 16. Ali há o enjambement de duas questões. A primeira delas, apresenta o circuito teórico da tese, fechado por definição, através da homologia entre melancolia, fragmento, imagem, imaginário e neo-barroco. “A melancolia leva ao fragmento. O fragmento apreende a imagem na escritura e a imagem se expressa pelo fragmento. Imagens formam um imaginário. Chegamos ao neo-barroco”. A segunda delas, já esboçada nesta conversa, reafirma a liberdade do narrador da tese frente aos seus autores/autoridades, mesmo os mais importantes deles, os três Bês (Benjamin, Barthes e Bakhtin) de que você fala à p. 32. Com Foucault leitor de Nietzsche, o narrador diz preferir “utilizar” a “comentar” os escritores que aprecia, mesmo se à p. 73 diga que dá mais valor aos comentaristas de Benjamin do que ao próprio Benjamin. Com Foucault, o narrador continua dizendo que usa as palavras alheias, as deforma, fazendo-as gemer e protestar. O narrador conclui endossando as palavras rebeldes de Foucault: “E se algum crítico [esclareço: este, por exemplo, ou aqueles outros à minha direita e à minha esquerda que no momento fazem parte desta banca examinadora] disser que não sou fiel a Nietzsche, isso absolutamente não importa”. O maratonista leitor, isto é, o erudito paciente, um nós outro (diferente do nós do título) estamos automaticamente desclassificados como leitores. No pódio acadêmico, seria o narrador da tese um irremediável iconoclasta? ou seria ele um autoritário? ou seria ele um erudito que descobre no frenesi da liberdade acadêmica a solidão mais profunda? Solto a pergunta.
Tanto mais pertinente é a pergunta por que não há contradição entre o que o narrador endossa de Foucault leitor de Nietzsche e o que ele ensina ao leitor da tese: “Procuro compor fragmentos, que embora possam ser lidos em separado, ganham força ao serem lidos em conjunto. Fragmentos autônomos, mas não isolados, que não são necessariamente citáveis como frases de efeito ou aforismos” (p. 49)? Pergunto: não é o próprio da poética fragmentária não se deixar ler “em conjunto”? Não foi Baudelaire, um dos pioneiros da poética fragmentária na modernidade, que deu título a certas passagens de Mon coeur mis à nu, de “Fusées” [foguetes]? Fusées são frases de efeito, são aforismos.
Essas perguntas tanto mais fazem sentido porque desde a p. 20 o narrador vem impondo regras rígidas de construção (para ele) e de leitura (para o leitor), em evidente contradição com as já citadas. Ali lemos: “o texto a ser construído não deve, ou não deveria, ser lido como unidade, completude ou continuidade, com o risco de brutal simplificação, onde ainda que [sic] os fragmentos não sejam independentes, têm uma autonomia relativa que, simultaneamente, possibilita-os serem lidos isolada e aleatoriamente, mas que um enriquece o outro, menos enquanto soma, mais em multiplicidade de direções”.
Ponho um ponto final na minha intervenção. O tempo está se esgotando. Valho-me de uma última comparação. A tese se apresenta, como um personagem de Buchner, protegida por pele de elefante, ou mais prosaicamente: como um carro blindado. Tentei perfurar a pele do elefante para tocar na carne sofrida da solidão intelectual, tentei atravessar as várias chapas que guardam a mercadoria que a tese quer negociar no mundo acadêmico. Não cheguei à carne, não cheguei à mercadoria. Um pouco e muito por falta de tempo. Por isso eu leitor, precavido e mineiro, resolvi acatar desde a primeira linha desta conversa uma dica do narrador que está à p. 242: “Num texto tão disperso como esse, tão cheio de recortes nos seus diferentes planos, o risco de uma brutal incompreensão está sempre presente”. Acatei isso na minha fala, não só por comodismo de precavido e mineiro leitor, mas porque ao continuar a leitura do fragmento de onde extrai essa frase ali me deparei com curta digressão sobre a dificuldade de interlocução. Da digressão extraio estas frases: “Fico pensando numa fala de Satyajit Ray, ‘nunca preste atenção a conselhos sobre detalhes de alguém que não tem o filme inteiro na cabeça tão claramente quanto você’. Mas se não prestasse atenção a essas pequenas sugestões e mesmo corresse atrás delas, a solidão em que me encontro seria talvez maior. Ou será hipocrisia minha aceitar sugestões que nunca levaram a uma mudança estrutural do que planejava para esta tese? Excesso de narcisismo ou consistência do projeto?”
Quem sabe se você, Denilson, não poderá responder agora as perguntas formuladas pelo narrador de Nós os mortos.