
O Blog da BVPS publica nesta semana, de terça a sexta-feira, a série “A sociologia como o quê?”. A série é resultado de uma mesa virtual realizada dentro da programação do arco Cultura&Conflito das “Segundas-feiras na Anpocs” no dia 11 de junho de 2022, quando então, no curto prazo, se projetavam eleições nacionais que poderiam ser um ponto de não retorno para a democracia brasileira. Essa mesa especial reuniu a socióloga Elide Rugai Bastos e os sociólogos Gabriel Cohn e Jacob Carlos Lima, atual presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), com o intuito de discutir criticamente as tarefas prementes da Sociologia e a sociedade brasileira num momento em que esta tanto precisa daquela, afinal, é na crise que os sociólogos temos mais a dizer.
Confira abaixo a apresentação da série, escrita por Maurício Hoelz, editor-responsável do Blog da BVPS, e na sequência o texto “A sociologia como coragem”, de Elide Rugai Bastos.
Boa leitura!
Apresentação
Por Maurício Hoelz (UFRRJ)
Em 1962, na abertura do II Congresso Brasileiro de Sociologia, o último antes das atividades da associação serem interrompidas pela ditadura civil-militar, Florestan Fernandes proferiu o discurso presidencial “A sociologia como afirmação”, conclamando os sociólogos à defesa das condições sociais da prática científica. Diz Florestan: “[o sociólogo] terá de compreender que a sociologia não pode medrar onde a ciência é repelida como forma de explicação das coisas, do homem e da vida; e que a ciência só pode expandir-se, efetivamente, entre os povos cuja civilização liberte a inteligência e a consciência do jugo do obscurantismo. Com isso, o que passa a ser essencial, numa certa fase de suas obrigações perante a ciência e a sociedade, vem a ser a conquista e a defesa de condições materiais e morais do trabalho científico. O combate ao atraso cultural inscreve-se entre seus papéis intelectuais, como e enquanto cientista (e não simplesmente como e enquanto cidadão)”. A afirmação da sociologia e da ciência por Florestan, que se revelaria quase premonitória de um futuro iminente, parece ganhar novo sentido, anacronicamente atual, frente aos negacionismos do passado, do presente e do futuro da nossa era da “pós-verdade” e seus avatares políticos.
Pouco mais de uma década depois, cassado e aposentado compulsoriamente da universidade pela ditadura, Florestan escreverá “A sociologia como contestação”, como que reiterando sua disciplina científica como um lugar de auto-observação reflexiva de uma sociedade que não lhe dá sossego nem segurança. Nesse texto, publicado em A sociologia no Brasil (1977), defende que “uma ordem social que se torna o reduto do pensamento reacionário e a base material da opressão institucionalizada divorcia-se por completo e definitivamente do pensamento científico. […] A verdadeira ciência começa, então, com a pergunta: como enfrentar e destruir, da maneira mais rápida possível, essa ordem social?”. Ora, hoje, em 2023, um espectro ronda o mundo: a ascensão em escala inédita da extrema direita com legitimação popular (em cuja cadeia o Brasil constitui um dos elos fortes). Tantos giros e viradas teóricas contemporâneas na Sociologia produziram uma rotação de perspectivas à altura dessa e outras emergências históricas ou apenas vertigem intelectual?
Já na abertura do III Congresso Brasileiro de Sociologia, o primeiro após a redemocratização, Gabriel Cohn – ex-aluno de Florestan e então presidente da SBS – profere a palestra “A sociologia como interrogação”, chamando a atenção para a importância da incorporação de temas emergentes e lembrando que “Pensar a Sociologia a sério é pensar a sociedade; mas pensar a sociedade ainda não é pensar a Sociologia”. A oposição necessária ao autoritarismo teve o efeito perverso de inibir a reflexão sociológica em nome das exigências mais imediatas, produzindo simultaneamente uma mitificação do “concreto” e uma desqualificação da teoria como luxo escapista. Caberia à Sociologia, no entanto, “manter vivo o seu autoquestionamento, não para desfibrar-se na eterna constatação da crise mas para descobrir os seus potenciais e, neles, as novas dimensões da sociedade que lhe cabe introduzir nos seus esquemas analíticos”. Sem interrogar a sociedade de modo novo e inteligente, completa Gabriel, “nada poderemos afirmar e, o que é pior, não saberemos cumprir a exigência primeira da ciência: formular bem a boa questão no bom momento. A sociologia como interrogação não é mera introspecção. A sua interrogação, levada a fundo, incorpora a afirmação e a negação: é o caminho para afirmar-se a Sociologia sem perder a força para negar-se a sociedade pela única via que importa, que é a crítica concreta, racionalmente fundamentada, estribada nos fatos e alheia a quaisquer concessões à moda, à oportunidade ou à simples acomodação”.
Formular bem a boa questão no bom momento. O título desta série pretende ser, portanto, uma interrogação ativa, cuja resposta implicará afirmação e contestação, já que a sociologia é ela mesma uma figuração social. O título também faz assim, encadeando as formulações anteriores, uma alusão sutil à ideia do próprio Florestan de que a ciência é uma prática investigativa que enlaça as gerações sucessivas numa contribuição invisível e ininterrupta. Para nós sociólogos, a sociologia é uma perspectiva que busca deslindar o diferencialmente social na sociedade, ao lado do econômico, do político, do cultural etc. Mas é também uma construção histórica que, em cada momento e sequência particulares, implica um modo específico de relacionamento entre o já conhecido e experimentado como passado e as possibilidades que se abrem ao presente e ao futuro como horizonte de expectativas. E agora, a sociologia como o quê?
Gostaria de agradecer à professora Elide Rugai Bastos e aos professores Gabriel Cohn e Jacob Carlos Lima, que generosamente aceitaram responder ao desafio da mesa e publicar os textos no Blog da BVPS. A Jacob agradeço ainda a sugestão de incorporar à série o texto “A sociologia como resistência”, da professora Maria Stela Grossi Porto, como uma homenagem à primeira mulher presidente da SBS que infelizmente nos deixou no início deste ano. Por fim, faço um agradecimento especial a André Botelho, ex-presidente da Anpocs, pelo acolhimento entusiasmado da proposta e pela interlocução em sua concepção.
A Sociologia como coragem | Segundas-feiras na Anpocs
Por Elide Rugai Bastos (UNICAMP)
O tema que me propõem é intimidante, porque obriga a repensar nossa própria atuação como docentes, orientadores e pesquisadores na área específica da sociologia. Ainda mais, na formulação da questão a ser debatida, temos a ilustração de respostas de grandes autores formuladas anteriormente.
Primeiramente, Florestan Fernandes, no II Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em 1962, define a sociologia como afirmação. Segundo, depois de 25 anos de ditadura, com a repressão proibindo esses encontros, no III Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em 1987 – ano importante para a sociedade brasileira, pois marca a instalação da Constituinte –, Gabriel Cohn define a sociologia como interrogação, o que seria fundamental para a elaboração de um diagnóstico da sociedade brasileira e para proposta de questões a serem abordadas no debate da nova Constituição, embora muitos delas não fossem consideradas e discutidas.
É importante salientar que tanto a formulação sobre o que é a sociologia quanto a temática dela decorrente estão fortemente enraizadas nos dilemas de seu tempo. Nesse sentido, qual a prioridade da abordagem que nos permite definir hoje os problemas muitas vezes aparentes, mas cuja naturalização ao longo da história fez com que não se tornassem eixo das reflexões? Ousar trazê-los para lugar urgente da análise muitas vezes foi motivo para “legitimar” a repressão sobre a sociologia e seus estudiosos. Florestan Fernandes, afastado em 1968 da Universidade de São Paulo pelo AI-5, ilustra o procedimento de controle da mudança social, no caso pela ditadura militar, que usou essa estratégia para coibir não só a difusão de informações como a própria produção de novos conhecimentos sobre a sociedade brasileira.
Florestan Fernandes definiu a sociologia como afirmação em um momento no qual a questão da modernização está, principalmente, enfeixada no debate sobre o desenvolvimentismo, marcado pela visão econômica. Nessa discussão, várias das atuações desse autor estão referidas à recusa de um projeto de desenvolvimento formulado para o conjunto da América Latina desacompanhada do debate sobre como as mudanças programadas afetariam os diferentes setores da sociedade. Mais ainda, adianta perguntas incômodas: que camadas sociais seriam beneficiadas por essas mudanças? Elas dariam prioridade a interesses dos setores tradicionais que sempre impuseram sua agenda político-social ou aos novos atores que emergirão nesse processo trazendo novas reivindicações? Já consciente dos acontecimentos que avançam em direção ao golpe de 1964, afirma o lugar da sociologia na luta contra o obscurantismo.
25 anos depois, Gabriel Cohn aponta as novas tarefas da sociologia. Mostra que, se a necessária luta contra o autoritarismo centralizou os debates durante aqueles anos, naquele momento caberia à sociologia não estacionar na análise da crise, mas interrogar a sociedade de modo novo e inteligente, indagando que novas questões se colocam. No cenário das transformações que ocorreram naquelas duas décadas e meia, que operaram uma “modernização pelo alto”, ou seja, sem a participação do conjunto da sociedade, aponta que o dilema afirmação/negação, constitutivo da análise sociológica, configura a temática que se nos impunha naquele contexto. Assim define a sociologia como interrogação.
Ao retomar as exemplares colocações sobre dois períodos importantes que redimensionaram a produção sociológica, nos parece claro que o tempo e o atual contexto histórico nos colocam diante de situações prementes. Não é sem razão que o tema “mudanças sociais” é a sombra, ou até mesmo o fantasma, que acompanha nossas reflexões. Agora é nossa vez de retomarmos a tarefa de Sísifo, que sofreu castigo aplicado por Hermes, deus das trevas, de buscar a pedra no fim da ladeira e trazê-la até o topo, até que ela role novamente e tenha que ser apanhada outra vez e por outros. E, mais ainda, conservar a esperança de que ela não tenha rolado para o abismo, impedindo sua retomada.
O quadro atual permite que eu ouse afirmar o que é a sociologia, longe de achar que acrescento algo muito diferente das definições anteriores propostas pelos meus mestres. Defino sociologia como coragem.
Os últimos anos nos puseram, não só no Brasil como no mundo, frente a vários problemas que já existiam, mas eram naturalizados e, por isso mesmo, não definidos claramente como conflitos a serem superados. Constato hoje a existência de um eixo a que os articulo: trata-se da questão da desigualdade. A sociologia representa, do meu ponto de vista, a coragem de denunciá-la, desnudá-la em seus vários aspectos e visualizar futuros possíveis para superá-la. Apresento alguns que parecem óbvios, por serem claramente visíveis e abordados pela mídia.
A crise sanitária que ainda enfrentamos desnudou a não igualdade entre as classes e camadas sociais, entre as diferentes regiões dos países e o brutal esquecimento das condições de vários continentes. Não por acaso, o Sul do mundo mostrou claramente a negligência de consideração, pelo hemisfério norte, da igualdade e da solidariedade como princípios políticos. Igualdade tem sido definida formalmente, apoiando-se na letra da lei e não na realidade da assimetria social, econômica, política e cultural. Solidariedade, substituta do termo fraternidade, que perdeu o sentido semântico que lhe foi conferido no contexto de sua formulação como princípio transformador, sendo confundido com caridade, ainda corre o risco de sofrer a continuidade desse equívoco. Exemplifico no mesmo quadro da pandemia. A Organização Mundial de Saúde tem alertado e denunciado a carência de vacinas contra o vírus nos países pobres, como os da África. Sabemos que em locais onde a meta de vacinação já foi cumprida, estoques maiores que a necessidade imediata correm risco de serem perdidos. Assim, alguns países doaram àqueles necessitados parte do excedente. Ação meritória, sem dúvida, mas as palavras dizem muito: doar significa favor e não direito ancorado em um princípio político. Diante dessa situação, a sociologia deve representar a coragem de revolver e retirar da lama a que foram alijados esses princípios que moldaram a modernidade, ao lado da liberdade, que também é principalmente entendida em seu plano individual e não social.
Volto a dar um exemplo simples, decorrente da desigualdade: a pobreza, presente no mundo desde sempre, constatada por estatísticas e, até mesmo, centro de políticas públicas para amenizá-la em várias regiões. Essa opção da sociedade é saudável e necessária para nos apontar os problemas e sua gravidade, tentando solucioná-los eventualmente. Mas simplesmente levantar dados não é fazer sociologia, embora esse diagnóstico tenha função de alerta e de base para a reflexão. Sociologia é coragem de indagar e denunciar a respeito do processo de reprodução da pobreza; seus efeitos na distribuição de poder na sociedade; as razões da exclusão desses setores da agenda política voltada a discuti-la; o descaso e/ou a repressão às mobilizações sociais que a denunciam, e, ainda, a desqualificação ou perseguição aos intelectuais que a tomam por objeto de reflexão crítica.
Outro exemplo óbvio é o da discriminação, não apenas a racial e a de gênero, mas também a sofrida pelos pobres. Todo comportamento discriminatório deve ser recusado veementemente numa sociedade democrática. No entanto, além da recusa total à discriminação, fazer sociologia é ter coragem de demonstrar que a atitude ou o comportamento discriminatório traduzem um princípio fortemente naturalizado na sociedade: trata-se da afirmação, sem pudor, da existência de setores populacionais inferiores, portanto incapazes de se beneficiarem dos mesmos direitos que têm a considerada “boa sociedade”, ou “os bons”. Acrescente-se a isso que parte substantiva “da boa população” considera que a “situação inferior” é produto da incapacidade desses setores de se equiparar aos “de nível superior”. Cabe hoje à sociologia a coragem de mostrar as diversas situações de vida dos setores discriminados, vivendo em grande parte na periferia das cidades e operando como trabalhadores mal remunerados, enfrentando um cenário social que não lhes permite ter as mesmas condições de competição do restante da população que se beneficia nas várias esferas da sociedade – a social, a econômica, a política e a cultural. Assim, restaria “naturalmente” a essa parcela da sociedade as tarefas e as profissões que não lhes abre espaço para a mobilidade social ascendente, ou usando expressão do senso comum, “melhorar de vida”. Assumindo a coragem que configura a sociologia, ao sociólogo cabe refletir sobre os efeitos de tendências ou políticas que visam apagar o avanço que algumas políticas públicas alcançaram no sentido de atenuar essa diferença competitiva. Vemos, hoje, propostas como corte de cotas na universidade ou bolsas de estudo que permitem a subsistência a alunos ou pesquisadores; descaso com a educação ou má distribuição de verbas para a escola pública; má informação propositada sobre a saúde, educação, economia e muito mais.
Até então falei sobre a sociologia em geral, mas passo a pensar na sociologia em relação ao que vivenciamos aqui e agora no Brasil. A sociologia como coragem entre nós significa admitir que não podemos aplicar, por modismo ou conforto, as reflexões que dão conta das sociedades hegemônicas. Temos que assumir corajosamente, como Florestan Fernandes apontou, que fazemos sociologia em um país que se encontra na periferia do capitalismo. Assim, a análise de nossa estrutura social e as possibilidades de agência, embora sem renunciar às grandes reflexões teóricas, deve considerar o modo como se organizaram as classes sociais, seu lugar histórico no poder, e como as elites sempre se organizaram para manter o controle das mudanças sociais. Em cenários de mudança, em vários momentos de nossa história, novos atores alcançaram condições de agência que antes lhes era negada, ou mesmo algum papel na formulação da agenda político-social. Sabemos o resultado dessa “ousadia”: forte repressão, golpes de Estado, ditaduras direcionadas à restrição da participação desses atores. Esse controle das mudanças sociais é bem claro atualmente. Assistimos a intervenções paralisadoras nas áreas da cultura e da educação; perseguição a artistas e intelectuais; cortes de verbas para pesquisas e avanço do conhecimento; fortes recuos nos já alcançados avanços históricos, para ser modesta nos exemplos. Nesse quadro, a sociologia deve assumir a coragem de não só denunciar esse controle, mas buscar esquemas analíticos que permitam mostrar as formas explícitas e as mais sutis – pois há a crença quase generalizada de que vivemos, no país, uma situação democrática, já que as instituições estão “plenamente em vigor” –, de modo a desnudar as formas pelas quais ele se exerce. Vale a pena nos dedicarmos a repensar o sentido da autocracia.
Poderia me estender sobre situações concretas, cuja superação seria possível pela força de uma sociologia como coragem. Mas fico por aqui, desejando que ao assumir tal posição tenhamos a ousadia de expressar da melhor forma possível o fato de que nós, sociólogos, nos sentimos desconfortáveis com as condições que são oferecidas à população considerada inferior e sem direitos, neste mundo e neste país.