
O Blog da BVPS publica hoje a íntegra do discurso de saudação de Wander Melo Miranda (UFMG) para a cerimônia de posse de Silviano Santiago na Academia Mineira de Letras. O discurso faz passagens por diversos momentos da obra do homenageado, sem deixar de lado o afeto e admiração que movem a fala reflexiva e crítica do colega e amigo.
Boa leitura!
Saudação a Silviano Santiago
Por Wander Melo Miranda (UFMG)
Falar sobre Silviano Santiago é mais do que uma honra, uma grande responsabilidade. Como resumir em palavras uma trajetória intelectual e artística tão rica e luminosa, expressa em mais de trinta livros? Como recopilar erudição tão ampla e cosmopolita? Como dar conta da posição referencial que sua obra ocupa na cultura brasileira? Como medir o que representou e continua a representar para tantas gerações de alunos e pesquisadores? Como falar dos inúmeros prêmios e comendas que recebeu no país e no exterior, o último deles o Prêmio Camões, em 2022, o mais relevante das literaturas de língua portuguesa?
Tomo um atalho para tentar, através da sua obra, um esboço de resposta, um mínimo perfil. Recorro a palavras que ele delega ao personagem Graciliano Ramos, na obra-prima que é Em liberdade (1981): “A verdadeira leitura é uma luta de subjetividades que afirmam e não abrem mão do que afirmam, sem as cores da intransigência. O conflito romanesco é, em forma de intriga, uma cópia do conflito da leitura”. Leitura e escrita perfazem, juntas ou superpostas, a via de uma atuação democrática específica, da qual Silviano fez sua profissão de fé. Para tanto, teve de entregar-se sem descanso ao trabalho rigoroso de desconstrução dos lugares-comuns literários, artísticos e ideológicos por meio da ficção, do ensaio e da poesia, sem falar da docência que exerceu por muitos anos no Brasil e em outros países.
Democracia e desconstrução como entrelugar – tomo livremente o conceito de sua autoria – do intelectual brasileiro e latino-americano em vista da sua inserção internacional: entrelugar de fala, portanto, em que o intelectual é a um só tempo explicado e destruído pelo discurso histórico, na medida em que este ressalta o fato de vivermos “uma ficção desde que fizeram da história europeia a nossa história”; resgatado e constituído, embora não explicado, pela Antropologia, “já que é o que é superstição para a História constitui a realidade concreta do nosso passado”.
Estava aberto um novo caminho para os estudos de literatura comparada, teoria da literatura e literatura brasileira entre nós, para os quais o papel de Silviano Santiago foi fundamental, ao romper conceitualmente com o primado da origem e tratar de nova perspectiva a relação entre cópia e original, tendo ressonância significativa na sua obra ensaística, ficcional e até mesmo na poesia – basta lembrar o livro excepcional que é Crescendo durante a guerra numa província ultramarina (1978). Pela nova relação, o escritor-leitor estabelece com o modelo pedido de empréstimo à cultura dominante o diálogo revelador da diferença instaurada pela cópia. O texto descolonizado da cultura dominada passa a ter uma riqueza e uma energia imprevistas, “por conter em si uma representação do texto dominante e uma resposta a esta representação no próprio nível da fabulação, resposta esta que passa a ser um padrão de aferição da universalidade tão eficaz quanto os já conhecidos e catalogados”. E o que demonstra nos textos, notáveis desde o título, “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1969), “Eça, autor de Madame Bovary” (1970) e “Apesar de dependente, universal” (1980), para citar apenas alguns.
Imbuído da perspectiva teórica por ele mesmo criada, o crítico dirige sua atenção para o modernismo brasileiro, entendido como ato de ruptura estética revolucionária, diferenciado, no entanto, das vanguardas europeias do início do século XX, embora tenha nelas inspiração e impulso. Sua abordagem é, mais uma vez, inovadora, ao dedicar-se à parte considerada então como menor das realizações modernistas: a correspondência e as memórias – aliás, foi Silviano Santiago quem introduziu o estudo sistemático da correspondência literária na universidade brasileira e é dele a organização do livro das cartas trocadas entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade.
A ruptura estética revolucionária caminha ao lado da restauração do passado e da tradição que o modernismo busca recuperar. Silviano Santiago foi, ao lado de Alexandre Eulalio, o primeiro crítico a dar a devida importância à viagem dos modernistas às cidades históricas mineiras em 1924 e seus desdobramentos, destacando o desejo expresso por Tarsila do Amaral de voltar a Paris, não em busca das novidades vanguardistas, mas para aprender a restaurar quadros, em razão do que a pintora vê nas nossas igrejas coloniais (Se me permitem um parêntese pessoal: quando levei a crítica chilena Nelly Richard para conhecer Ouro Preto, ao visitar o Museu do Oratório ela me disse algo que nunca esqueci: “deve ser muito difícil pintar neste país”, como que confirmando o deslumbramento inicial de Tarsila).
Silviano Santiago vai ainda mais além, ao tratar das condições de circulação da obra modernista entre os leitores. Num país marcado por analfabetismo, baixa escolaridade e circulação restrita do produto cultural, diz ele, não cabe insistir na exigência de um leitor culto, de elite, como o idealizado pelos modernistas. Não cabe ainda, pautar-se, pela postura liberal-iluminista e universalizante assumida por estes ao conceberem o artista como um intelectual temporário e provisório que só se imiscui nas questões de seu tempo quando é chamado a fazê-lo, retornando após cumprida a missão ao “alheamento” da feitura da obra.
Por isso dá importância e destaque crítico aos relatos de vida dos perseguidos pela ditadura militar de 1964, quando, com a anistia política, voltam ao país na segunda metade dos anos de 1970, e toma corpo uma nova linha – a dos relatos de vida ou grafias-de-vida, como mais tarde prefere denominar as realizações de cunho autobiográfico. Enquanto o texto dos velhos modernistas é centrado na recuperação da história pessoal a partir de sua inserção histórica conservadora na família e no clã patriarcais, o texto dos jovens revolucionários políticos centra seu interesse no indivíduo e na sua participação política no pequeno grupo marginal, quando “esteve em jogo a liberação do Brasil pela luta armada”.
Nesse contexto, escreve Em Liberdade (1981), como forma de dialogar com os jovens ex-exilados e com a experiência de um perseguido e preso político ilustre: Graciliano Ramos. Incorpora o autor de Memórias do cárcere para homenagear o notável precursor, por meio do pastiche de seu estilo. Escreve ou reescreve, então, o diário que Graciliano teria escrito após deixar a prisão em 1937 e ao fazê-lo o personagem incorpora por sua vez o poeta inconfidente Claúdio Manuel da Costa, morto na prisão em 4 de julho de 1789. Reúne, assim, três períodos de tempo distintos em que o intelectual e o escritor foram postos à prova e sofreram a mão pesada da repressão, traçando um painel pormenorizado das nossas desilusões históricas.
Em liberdade é o primeiro livro de uma trilogia que se completa com Viagem ao México (1995) e Machado (2016). Biografias de artista sem dúvida, mas limitadas propositalmente a “curtíssimo transcurso de tempo vivido pelo protagonista”, como diz Silviano Santiago no alentado depoimento que dá sobre os três romances. São vozes interpostas, modo obliquo de falar da sua condição de escritor por meio de outras experiências de escrita. No livro sofisticadíssimo que é Viagem ao México, assume a forma monstruosa do anfíbio – “uma só cabeça e vários tentáculos, várias pernas – tentáculos que se assentam em terras diversas e variados mares” e superpõe o ano de seu nascimento, 1936, ao da partida de Antonin Artaud para o México, coincidência ressaltada textualmente e ampla de significados. Parte em busca de seu protagonista, como se fosse um seu heterônimo pessoano – e nesse como se o autor já se apresenta irrevogavelmente ficcionalizado: “Vou à procura de Artaud num oriente ao oriente do oriente, numa terra tão à leste que já é oeste”, diz. Assume, então, a forma da máscara (como no teatro) ou da assinatura (falsa), confunde uma e outra até o limite da despersonalização, ou seja, da afirmação da verdade do discurso biográfico pela sua impossibilidade narrativa. Assim, o livro implode as fronteiras da representação e seu duplo, da tradição em que paradoxalmente se insere.
O deslocamento espacial de Antonin Artaud/Silviano Santiago é também deslocamento da escrita para a pintura, como indica a reprodução de Loth et ses filles, do pintor Lucas van Leyden, reproduzido na contracapa do livro como parte significante de seu significado, assim como quadrinhos e fotos pessoais estarão presentes nas páginas de Menino sem passado (2021). A viagem da escrita repõe em cena pela ficção, como antes o autor fizera teoricamente, o confronto entre o Velho e o Novo Mundo, realçando, dessa vez, o europeísmo dos intelectuais mexicanos, para decepção de Artaud (o francês os chama de pompom grená), que busca na “antiga cultura Solar” dos astecas outra possibilidade de vida e civilização que não a europeia, algo que o exceda e se dê pelo excesso.
No romance Machado, os últimos anos de vida do escritor são tratados pelo viés da doença que o acomete e recrudesce violentamente à mesma época em que Pereira Passos bota abaixo o Rio de Janeiro, em mais uma etapa da nossa desajeitada modernização. Morte e destruição unidas e iluminadas pela Transfiguração, de Rafael, cuja reprodução, de forma magnífica e inesperada abre o livro e cujo requintado comentário o encerra. No meio, as inesperadas crises epiléticas na rua, o tratamento com o dr. Miguel Couto, a amizade com Mário de Alencar, cúmplice na mesma doença, a escrita dos últimos livros: uma sorte de leitura profana do quadro, que o reveste e ao livro que o inclui de uma atualidade impressionante.
Nessa obra-prima das muitas que escreveu, Silviano Santiago traça, numa linguagem convulsiva, uma sorte de história das mentalidades entre dois séculos, para a qual contribuem as várias fotos, imagens documentais e epígrafes que compõem o romance, história que se condensa no corpo alquebrado do escritor que é, afinal, matéria principal do livro e signo determinante da sua feição biopolítica, como os versos de Baudelaire, traduzidos pelo narrador, sinalizam: “Eu sou a faca e o talho atroz! / Eu sou o rosto e a bofetada! / Eu sou a roda e a mão crispada, / Eu sou a vítima e o algoz!”.
Silviano Santiago volta de novo a Graciliano Ramos e a Machado de Assis em Fisiologia da composição (2020) – fisiologia e não filosofia, como está no título do texto de Edgar Allan Poe em que busca hospedar os corpos escritos de seus escritores, deslocamento significante que só faz aumentar o alcance da sua reflexão. Agora a orientação é ensaística e o conceito-chave é o de hospedeiro, para o qual contribuiu decisivamente a trilogia antes referida. Ressalta o estilo citacionável (o neologismo é seu) do autor alagoano, demanda à qual Em liberdade responde como suplemento do texto de Graciliano e, por ricochete, ampliação das possibilidades significantes da resposta no âmbito da história da literatura brasileira, de uma perspectiva borgianamente anacrônica e dialógica.
Na leitura detalhada que faz da composição de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e de Esaú e Jacó (1904), impõe-se a relação conceitual hóspede/hospedeiro, que aproxima e diferencia, sobretudo, Machado e o texto bíblico, Machado e Voltaire, Machado e Thomas Mann, – “nacional e universal por subtração?”, pergunta-se matreiro o crítico. No dizer da nossa saudosa Eneida Maria de Souza, na orelha do livro, que considera com justiça uma obra-prima, Fisiologia da composição “encena a homologia entre escritor e crítico, vocação ficcional de tornar o ensaio teórico em ‘grafia-de-vida’, sem romper com o distanciamento autoral”. Mas esse circuito não se encerra aí: Silviano Santiago, incansável, tem em preparação um novo livro, no qual propõe uma leitura contrastiva de Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis, e de “Um amor de Swann” (1914), de Marcel Proust, na qual “acopla obras literárias heterogêneas com a finalidade de desconstruir ou de grafar entre aspas − como recomenda Jacques Derrida – a noção eurocêntrica de universal na literatura e nas artes”, diz ele no projeto que tem como título O grande relógio: a que hora o mundo recomeça.
O último livro de Silviano até agora é Menino sem passado (2021). Constitui-se por um duplo movimento da memória: história familiar e história literária se revezam e se compactam, como de resto no conjunto da sua obra. Um olho lá, outro cá, dentro e fora, o estrabismo corrige a miopia do menino e amplia o campo de visão do adulto escritor. Tudo se torna “emaranhado” na vertigem das relações e analogias textuais, propícias ao ilimitado da reminiscência – “todos os seres humanos e todas as coisas são afins”, diz o narrador.
A enxertia textual do memorialista, herança incontornável do pai, por sua vez, é como um vitral em que a unidade se descontrói e forma corpos descontínuos, a um só tempo perdidos e recuperados pela escrita. Em relevo, destaca-se o corpo dolorido do menino arredio e inquieto, um composto híbrido de dor e alegria – “a própria dor é uma felicidade”, repete o narrador, tomando de empréstimo palavras de Mário de Andrade, afins à situação do tio louco, também ele de nome Mário, personagem de Uma história de família (1992), com os quais o memorialista se identifica.
As cenas de exclusão do romance familiar – e são muitas no livro – aguçam a sensibilidade do menino a crescer livre, portanto, do “patriarcado ítalo-mineiro”, tornando-o mais apto a reportar – de dentro e de fora – suas idiossincrasias e, por tabela, as da cidade, da região, do país, às quais o segundo conflito mundial confere dimensão abrangente: “Uma só e imensa família da província mineira na província planetária”.
É dessa província mineira e planetária a um só tempo que provém o autor estudado em um dos livros mais pessoais de Silviano Santiago, Genealogia da ferocidade: ensaio sobre Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (2017). Nele, examina a fortuna crítica que busca domesticar o “monstro literário”, “intolerável”, “anacrônico”, “indigesto”, para ficar apenas com alguns qualificativos que os críticos, de início, lhe impuseram. Opta, na sua leitura, por ressaltar a wilderness do livro – o trenzinho caipira de Villa-Lobos que sai selvagemente dos trilhos. O mundo de Rosa é anacrônico, acrônico, diz o crítico, trata-se “de um enclave arcaico, perdido por detrás da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, a esbofetear a pseudomodernidade do pós-colonialismo no Brasil e na América Latina”.
Muito mais poderia ser dito sobre Silviano Santiago e sua obra, dos contos de O banquete (1970) aos de Keith Jarrett no Blue Note (1996), do romance Stella Manhattan (1985) a Heranças (2008) e Mil rosas roubadas (2014), dos ensaios de Nas malhas da letra (1989) aos de O cosmopolitismo do pobre (2004), dos poemas de Cheiro forte (1995) aos mais recentes de Paisagem (2022), para ficar apenas com alguns títulos, não por uma questão de valor ou interesse, é claro, mas por limites de espaço e tempo.
Antes de terminar, gostaria de ressaltar a marca mais relevante da personalidade de Silviano Santiago, rara hoje em dia: a generosidade. Ela é o motor que move suas ações, é dela que faz abrigo para os amigos, amigas e colegas, sempre pronto que está para acolher demandas as mais diversas e oferecer uma solução quando um problema se apresenta. Por tudo isso, é com a força maior da alegria que recebemos hoje Silviano Santiago nesta casa das artes, literaturas e culturas que atravessam nossas Minas que ainda resistem, Minas Gerais.
Seja muito bem-vindo, Mestre, à casa de Alphonsus, que agora também é sua!
