
O Blog da BVPS publicou nesta semana, de terça a sexta-feira, a série “A sociologia como o quê?”. A série é resultado de uma mesa virtual realizada dentro da programação do arco Cultura&Conflito das “Segundas-feiras na Anpocs” no dia 11 de junho de 2022, quando então, no curto prazo, se projetavam eleições nacionais que poderiam ser um ponto de não retorno para a democracia brasileira. Essa mesa especial reuniu a socióloga Elide Rugai Bastos e os sociólogos Gabriel Cohn e Jacob Carlos Lima, atual presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), com o intuito de discutir criticamente as tarefas prementes da Sociologia e a sociedade brasileira num momento em que esta tanto precisa daquela, afinal, é na crise que os sociólogos temos mais a dizer.
No último post, publicamos o texto “A Sociologia como resistência”, de Maria Stela Grossi Porto (in memoriam), apresentado no Fórum 70 anos da SBS, em julho de 2021. Com essa publicação, o Blog da BVPS faz sua homenagem à primeira mulher presidente da SBS, que infelizmente nos deixou no início deste ano.
Para saber mais sobre a série, confira os posts anteriores, clicando aqui, aqui e aqui.
A Sociologia como resistência | Fórum 70 anos da SBS
Por Maria Stela Grossi Porto (in memoriam)
É com grande prazer e emoção que participo deste Fórum que celebra os 70 anos da SBS, momento para relembrar conquistas e apontar os desafios que ela se coloca, ou que a confrontam em seu dia a dia, como proposto nos objetivos deste encontro. Agradeço a Jacob Lima, presidente da SBS, à atual diretoria e à organização do 20º Congresso, na pessoa de sua presidente Edna Castro. Sinto-me privilegiada por compartilhar estas celebração e festa, ao lado de Gláucia Villas Boas, Gabriel Cohn, Sergio Adorno e José Vicente, intelectuais e colegas que foram e são parte significativa da construção institucional da Sociedade Brasileira de Sociologia.
À emoção e à alegria pelo convite vieram se somar as angústias e apreensões pela responsabilidade da tarefa. Depois de algumas incertezas sobre que trilhas me manteriam fiel ao que acredito melhor representar a SBS; depois de consultar, ao vivo e a cores e de forma digital, textos e depoimentos que falam da nossa história e memória; depois de, introspectivamente, escutar o que me diziam coração e mente e dar voz aos silêncios que deles brotaram, concluí que o fio condutor desta fala poderia ser a ideia de contemporaneidade, presente deste sempre como marca identitária da SBS que, assim como a própria sociologia, nasceu sob o signo do presente. Contemporaneidade, modernidade, tempo, realidade, são palavras que surgiriam em destaque, caso nos permitíssemos, a título de brincadeira, construirmos uma nuvem de palavras que desvelasse e desvendasse nosso ofício. Nada melhor do que elas para definir o sentido preciso da sociologia, disciplina voltada à atualidade, comprometida com sua compreensão, com o profundo sentido do presente, do aqui e do agora, ao mesmo tempo em que se reconhece devedora da tradição e consciente de seu compromisso com o futuro. Sem este claro sentido de contemporaneidade, qualquer ponte instada entre a tradição e o devir estaria, por falta de sustentação, fadada a desmoronar. Se não se resgata a tradição e a memória que orientam os passos rumo ao futuro, o presente paira no ar parecendo faltar-lhe chão, reconhecimento, identidade e sentido. A SBS tem na solidez destes pilares seu modus operandi e é com estas lentes, ricas de história, que se debruça sobre a realidade para refletir sobre as transformações pelas quais tem passado a sociedade brasileira, inseridas, e tendo como palco, o cenário mundial, contemplando as relações entre o geral e o particular, o passado e o futuro acompanhando, atentamente, a natureza destas configurações.
As temáticas, títulos e publicações de muitos dos nossos congressos confirmam o quanto a questão da contemporaneidade está contemplada na atuação da SBS. Lembremo-nos de alguns: ‘Sociologia hoje’; ‘A contemporaneidade brasileira – dilemas e desafios para a imaginação sociológica’; ‘Sociologia em transformação: pesquisa social do século XXI’; ‘A sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade’; ‘A sociologia no tempo: memória, imaginação e utopia’; ‘A sociologia para o século XXI’; ‘Sociologia e Realidade: pesquisa social no século XXI’. Outras temáticas interpelam diretamente a compreensão da sociedade, o que não é senão outra forma de ser atual: ‘Desigualdade, diferença e reconhecimento’; ‘Sociologia e conhecimento além das fronteiras’; ‘Sociologia em diálogos transnacionais’; ‘Que sociologias fazemos: Interfaces com contextos locais, nacionais e internacionais’. E, ainda, se se compara o título do workshop promovido pela SBS no congresso da SBPC de 1992, ‘Natureza, História e Cultura’, com o deste 20º Encontro: ‘Sociedade, Estado e Natureza’ salta aos olhos que, em ambos, existe a recusa à ruptura entre natureza e cultura, por meio do mergulho nas inquietantes e candentes questões do meio ambiente e da sustentabilidade. Temáticas para as quais as ciências sociais, e particularmente a sociologia, muito têm a contribuir, contrariamente ao que pretendem afirmar setores de governo e, infelizmente, camadas numericamente não desprezíveis da sociedade civil.
As inquietações e reflexões presentes nestes títulos alimentam a quem se deixa atrair pelo fazer sociológico, nele mergulha e se envolve, seja no cotidiano do ensino e da pesquisa, seja nas tarefas de gestão, partilhando a construção institucional e o avanço da sociologia como ciência. Pés e olhos fincados na realidade, sensíveis a suas demandas, mas sem se deixar por elas colonizar. Propósitos que movem a trajetória da SBS ao longo destes 70 anos e que a levaram a consolidar, com esforço e muito trabalho, seu espaço na comunidade científica, nacional e internacional, como uma instituição competente, atuante e necessária. Sua participação na ISA, ASA, LASA e outras, ocupando cargos, inclusive na presidência, assim como no contexto nacional, sua atuação na SBPC, na ANPOCS e demais sociedades científicas, testemunham o acerto desta afirmação. A título de exemplo, três vice-presidentes da SBPC, profas. Vilma Figueiredo, Ana Maria Fernandes e Fernanda Sobral, a atual vice-presidente, são sociólogas, ativas na SBS e, se me permitem extrapolar no orgulho das referências, são do Departamento de Sociologia da UnB. Igualmente incontornável é a participação direta, ou indireta, da SBS na CAPES e no CNPq e em agências estaduais de fomento, consolidando, igualmente, processos de construção institucional.
Já repeti tão abundantemente que a SBS é minha instituição do coração que o refrão vem se tornando lugar comum. Porque, sem dúvida, são sentimentos de pertencimento, identificação e emoção os que de mim se apoderam ao falar da SBS, desde que, em 1987, recém-chegada como docente à Universidade de Brasília, assinei, como sócia ‘re-fundadora’, juntamente com muitos que hoje estão aqui e com aqueles que, infelizmente, já nos deixaram, a ata de reconstrução da sociedade, silenciada e paralisada em consequência do golpe militar de 1964. A SBS havia realizado dois congressos, o de 1954 e o de 1962, antes do histórico momento do terceiro congresso, o da revitalização, restauração, reconstrução, datado de 1987, quando na condição de presidente e secretária executiva tomaram posse o professor Gabriel Cohn e a professora Vilma Figueiredo. O tema, “Sociologia, Sociologias”, enfatizava a pluralidade de abordagens que caracteriza o campo e que, longe de significar ecletismo, aponta para uma realidade múltipla, complexa e inesgotável, como já ensinava Weber, e com a qual a disciplina tem se havido; para ser capaz de entender (e explicar) o social, e assumir posições de defesa de valores incontornáveis como os de garantia das liberdades democráticas, dos direitos, e da justiça sempre que estejam ameaçados.
Creio poder dizer que, desde aqueles idos de 1987, compreendi, racional e emocionalmente, o papel e a importância de uma sociedade científica: dá o tom e imprime a filosofia a sua disciplina, ao promover e propiciar o encontro de seus integrantes, definir temas de congressos e apontar caminhos teórico-metodológicos e empíricos que propiciam o avanço do conhecimento. Por meio do diálogo, do debate, da troca, a SBS faz dos congressos e demais eventos que patrocina espaços privilegiados de encontros acadêmicos e de afetos, momentos por excelência para pensar os rumos da disciplina e para pôr em marcha o dia a dia que a faz viver.
Assim, para falar das conquistas, pelo caráter simbólico que representou, considero a revitalização da SBS sua conquista maior; as dificuldades que interromperam seu funcionamento não mataram a semente: já plantada em terra firme, ela renasceu, se reergueu, com a força, coragem e dinamismo que mantém até hoje. Um reavivar da tradição que trouxe e segue trazendo encorajamento para os enfrentamentos e desafios que o futuro reserva.
Neste esforço de interrogar o passado, percorrer as linhas do tempo, como condição para se debruçar sobre o presente e antever o futuro, outra grande conquista da SBS é o projeto memória, que muito me emociona. Se é verdade que inveja boa não chega a ser propriamente pecado, confesso que olhei com olhos gulosos todo o esforço, e, principalmente, toda a beleza de resultados que é este projeto. Falo em uma boa inveja pois tentei iniciar este processo, mas não obtive sucesso. Talvez não tenha sido aguerrida o suficiente nos esforços então iniciados. Faltou-me também o mínimo necessário em infraestrutura material e em recursos humanos que possibilitassem a concretização, naquele momento, do almejado projeto. Essa tarefa, iniciada no Rio de Janeiro, quando da comemoração dos 60 anos, ganhou, agora, novo impulso com a disponibilização, no site, da documentação oficial da instituição, aí compreendidos o catálogo da exposição, o vídeo comemorativo dos 60 anos e a feliz iniciativa da inserção, neste projeto, da aba referente às bionotas. São espaços de demarcação da construção identitária da SBS.
Ainda no rol das conquistas, mas sem pretensão, nem condições concretas para esgotá-las, assinalo mais algumas que considero muito significativas. Deixo de mencionar seus autores, os feitos são facilmente reconhecíveis e identificáveis, lembro: a ) a instituição, em 2003, do prêmio Florestan Fernandes; b) a inserção, nos congressos, da temática da sociologia no ensino médio e do ensino de sociologia nas universidades; c) o avanço permanente da articulação internacional da SBS; d) a preservação do caráter científico da instituição, e) o aumento no número de participantes, sem perda de qualidade dos encontros; f) a instituição da atividade ‘Sociólogos do Futuro’, um lindo título, abrindo, para os jovens, a janela para o amanhã, g) a constituição, a partir dos GTs, dos atuais Comitês de Pesquisa, agregando dinamismo e autonomia àqueles GTs já mais consolidados; h) a existência da Revista Brasileira de Sociologia e da Sociologies in Dialogue, i) a intensificação da participação da SBS na mídia, por meio de blogs, da série ‘SBS convida, dentre muitas outras conquistas. A lista é rica e quase percorre o alfabeto. Não tenho como ser exaustiva e assim vou fechá-la mencionando algo que me toca diretamente. Refiro-me à inserção feminina na presidência da SBS. Quero acreditar, aliás, que minha inclusão neste fórum comemorativo seja motivada pelo fato de ter sido eu a primeira mulher a chegar à presidência da SBS, inaugurando um espaço que veio a ser seguidamente preenchido por outras queridas colegas sociólogas. Foi uma conquista significativa. Em distintas instâncias, sociais, políticas e mesmo intelectuais, a presença feminina em cargos diretivos tem sido resultado de lutas, disputas e buscas por reconhecimento, algumas vezes com elevados custos pessoais e sociais. Não foi o caso na SBS; aqui o processo ocorreu de forma natural, fruto do profissionalismo e do espírito de avant-garde que a caracterizam.
Foi difícil a decisão de aceitar o convite para concorrer ao cargo: assustava-me a responsabilidade, desencorajava-me o temor de não estar à altura das exigências que o amadurecimento e o reconhecimento institucional, já alcançados pela SBS, exigiam. Porém, fascinava-me o desafio de ser parte integrante da construção institucional dessa instituição, na qual encontrava fortes vínculos e identificações, acadêmicas e afetivas. Atraía-me a ideia de jogar-me de corpo e alma nos deveres, trabalhos, alegrias e angústias do cargo, dedicando-me a algo em que acreditava profundamente. Aceitei e tornei-me, com orgulho enorme, a primeira mulher presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia que, desde então, alterna entre mulheres e homens esta tarefa realizada com muito trabalho, mas movida também, e muito, pela paixão.
Para concluir, uma palavra sobre os desafios que nos confrontam. Em 2003, ao assumir, a presidência, questionava-me: que desafios estão hoje a nos interrogar como sociólogos? O que, na contemporaneidade, põe em marcha a imaginação sociológica? Tais desafios, eu me dizia, se concretizam em dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais e poderiam, em última instância, traduzir-se em uma formulação única, que congrega as demais: referia-me ao tratamento a ser dado à questão da diferença e, acrescentaria, da desigualdade. A equação dessa questão, acreditava eu, poderia levar tanto ao reforço e ao estreitamento dos laços sociais e de solidariedade quanto ao esgarçamento e à ruptura do tecido social, numa explosão de conflitos e ou violências. Como, então, dar voz à diferença sem renunciar à preservação destes laços? Em outras palavras, afirmava que a democracia no século XXI teria como um de seus mais sérios desafios o tratamento a ser dado a esta questão e que à sociologia, apoiada por sua sociedade científica, caberia como missão se debruçar sobre ela, não para trazer receitas prontas, que a rigor não existem, mas para avançar o conhecimento e a análise crítica, pondo em prática criatividade, imaginação e reflexividade. Tendo a acreditar que minha reflexão de então parece atual: conflitos e violências decorrentes da intolerância e da rejeição às diferenças, de gênero, raça, de religião e, mais do que nunca, políticas, não fazem senão se agravar, potencializados, alguns, pela pandemia, tragédia instalada em dimensões planetárias e que no Brasil já fez mais de meio milhão de vítimas.
Outra questão desafiadora é a de responder com competência, coragem e firmeza aos ataques que a sociologia tem sofrido. Se no congresso de 1962, Florestan Fernandes, na certeza de que a nossa é uma ciência que veio para ficar, propôs a Sociologia como Afirmação, contra o que seriam para ele forças obscurantistas; se em 1987, Gabriel Cohn sugeriu repensá-la nos termos da Sociologia como Interrogação, para, no exercício da auto interrogação poder, também, interrogar a sociedade; hoje neste momento em que vem sendo questionada, rechaçada, ameaçada, para não dizer perseguida, proponho pensar a Sociologia como Resistência, assumindo, sem populismo intelectual mas com força, competência e clareza, sua função social. As forças obscurantistas que inquietaram Florestan Fernandes têm se mostrado implacáveis. Ao mesmo tempo, a interrogação sugerida por Gabriel Cohn (1987) nunca foi tão necessária. Em seus termos: “Pensar a Sociologia a sério é pensar a sociedade; mas pensar a sociedade ainda não é pensar a Sociologia. Aqui, sim, trata-se de restaurar uma unidade fundamental, na sua tensa integridade, entre a análise social e reflexão sociológica”. Pensando a partir desta tensão criativa entre afirmação e interrogação, assumiria que o autoquestionamento sociológico é condição para nosso conhecimento e reconhecimento como ciência. Gostaria de poder dizer que a Sociologia como Resistência poderá viabilizar e dar voz a este exercício sociológico de fusão entre afirmação e interrogação. E fazer, assim, da reflexão sociológica condição para a análise social.
Com o empenho e o trabalho de cada socióloga e cada sociólogo e o comprometimento da SBS, mesmo conscientes de que o momento é desfavorável e até desalentador, é possível acreditar que a sociologia poderá ultrapassar esta etapa, de nuvens e intempéries, e contemplar, fortalecida, um novo alvorecer. Nos termos de Guimarães Rosa, que se aplicam lindamente à SBS “Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem”.
Referências
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