Hospedagem Vale Quanto Pesa | As incertezas do sim, por Rafaela Cardeal

O Blog da BVPS dá continuidade à Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. Propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais.

No post de hoje, trazemos o texto “As incertezas do sim”, de Rafaela Cardeal (Universidade do Minho), que se hospeda no ensaio de mesmo título de Silviano Santiago. 

É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.

Acompanhe as postagens da Hospedagem, sempre às segundas e quartas-feiras. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.

Boa leitura!


As incertezas do sim

Por Rafaela Cardeal (Universidade do Minho)

Em “As incertezas do sim”, Silviano Santiago (1982) se debruça sobre A escola das facas, de João Cabral de Melo Neto, livro impresso em dezembro de 1980. A recepção a quente, escrita na sequência do seu lançamento, ilumina certos aspectos centrais da poética do autor, que se traduzem nos subtítulos escolhidos pelo crítico literário para pontuar sua análise: “veio autobiográfico”, “despersonalização do poema”, “a incerteza do sim”, “duelo à pernambucana”. Este último, título de um dos poemas, seria o símbolo do novo estágio que a poesia cabralina atingia naquele momento. Se o caminho trilhado pelo crítico nos dirige desde o início para incertezas, que pareciam ter eclodido tardiamente nessa poesia, quarenta anos depois, a leitura do ensaio nos ajuda a perceber que afinal todo o percurso de João Cabral foi infiltrado por dúvidas, hesitações. 

No livro recenseado, a potente imagem forjada pelo título, que funciona também como metáfora do projeto poético cabralino, aponta-nos a dimensão da aprendizagem. Dando continuidade ao sentido pedagógico de A educação pela pedra (1966), o poeta irá tratar da gênese do “estilo das facas”, mostrando-nos, desta vez, onde ele aprendeu a afiar e a empunhar sua faca só lâmina:

Foi aqui (nos engenhos) e assim (através de uma vivência pessoal) que foram educadas, formadas, as mãos que manejam as “facas” de que fala a sua poesia. Eis a mão que segura a “faca”, eis como foi adestrada essa mão. É dessa mão de menino/homem que fala a nova poesia de Cabral (Santiago, 1982: 42).

É o que se reconhece, imediatamente, no poema de abertura “Menino de engenho”, no qual o poeta como o próprio menino de engenho vai nos apresentando sua relação íntima com o universo açucareiro através das explorações e descobertas infantis. Ou, sob outra perspectiva, na visão de adulto, nos desígnios dessa linhagem e de seus antepassados. Em “Autobiografia de um dia só”, por exemplo, narra seu nascimento, a viagem da mãe, às vésperas do parto, obrigada a cumprir uma tradição familiar.

O traço autobiográfico que poderia ser visto como novidade temática apresentada na poesia do autor, como bem observa Santiago, é só aparentemente novo. A novidade é a abertura de um desvio interpretativo que coloca a leitura dos poemas anteriores na vertente da sua genealogia, ou “gênese pessoal”, no dizer de Murilo Mendes. Ainda assim, alerta-nos o crítico, a ausência do traço autobiográfico na poesia anterior de João Cabral não seria “um sinal de menos”; nem a sua presença tardia “um sinal de mais”. Apesar de uma das marcas personalíssimas de sua poesia ser a rasura do eu, o apagamento do sujeito empírico do poema, assistimos à construção de uma voz impessoal, impiedosa, quase abstrata, que parece constantemente atravessada por vivências, memórias. Não por acaso, Sérgio Buarque de Holanda (1952) cedo afirmou que não haveria paradoxo em dizer que numa obra tão voluntariamente impessoal como a de João Cabral, o autor parece presente de corpo inteiro.

Contra a poesia dita profunda e o sentimentalismo típico de certo lirismo, a poesia de João desde logo quis compreender a psicologia da composição, para citarmos o livro de 1947, a psicologia do poema, e não do poeta. No entanto, com a publicação de O cão sem plumas (1950), a presença expressiva de Pernambuco vai, pouco a pouco, nos mostrando reminiscências que sempre estiveram latentes. A partir da repetição que se cria pela recorrência dos temas, sobretudo os nordestinos – a tal serventia das ideias fixas, de que fala Uma faca só lâmina –, conseguimos entrever a fisionomia do autor. Se ele não está – e não quer estar – inscrito nos seus versos, uma das alternativas que temos hoje é procurar João Cabral fora da obra, na sua vida particular, em expressões públicas ou privadas, entrevistas e cartas, o que a crítica de Silviano Santiago e de seus contemporâneos não pôde, ou não quis, fazer. 

Sobre a publicação A escola das facas, livro escrito entre 1975 e 1980, como nos indica o subtítulo, podemos recuperar as explicações de João Cabral em carta enviada ao editor Daniel Pereira, da José Olympio. De Quito, em 21 de agosto de 1980, escreve o poeta: 

Mudei o título como você vê. Achei que o adjetivo pernambucano sendo anticomercial em “Poemas pernambucanos” seria também em “Museu pernambucano” que foi o outro título que eu tinha proposto. Assim, botei “A escola das facas” (poesia 1975-1980) para ficar próximo de Molière e de Gide que, cada um, é autor de uma Ecole de Femmes. O Antonio Candido que está aqui por uns dias gostou muito da ideia. O poema dedicatório como você vê, mudou de nome. O título é a paráfrase de um título de Rimbaud e dá mais graça ao livro. Se não for essencial para Vocês, gostaria que o livro saísse sem fotografia e sem a minha biografia. Em geral, as fotografias de intelectuais são ridículas: mostram-nos 30 anos mais jovens e com ares meditabundos que ninguém pode levar a sério. Quanto à biografia, é coisa que não tenho (Melo Neto apud Ferraz, 2021: 196).

O livro em que o autor não queria que constasse nem fotografia nem biografia, curiosamente, estava impregnado de dados autobiográficos, muitos deles ligados à infância e às primeiras vivências pernambucanas, como logo mostrou Silviano Santiago. Mesmo reivindicando para si a ausência de biografia, uma das marcas de sua poética é o que se pode chamar memorialismo, nas palavras de Eucanaã Ferraz (2021), uma característica que está em outros livros além de A escola das facas. Essa dimensão fica bem apontada pelos títulos descartados, sobretudo “Museu pernambucano”, que instauraria uma nítida linha de continuidade com o título anterior, Museu de tudo (1975), antecipando o salto que observamos, mais tarde, em Agrestes (1985). 

Tendo em vista esse recorte, A escola das facas funciona como um momento de transição entre a miscelânea reunida no Museu – escritores, pintores, pessoas, paisagens – e o cosmos estruturado por Agrestes, que se apresenta ao leitor em seis seções: “Do Recife, de Pernambuco”, “Ainda, ou sempre, Sevilha”, “Linguagens alheias”, “Do outro lado da rua”, “A ‘Indesejada das gentes’” e “Viver nos Andes”. Excetuando esta última seção, que retrata uma novidade, a paisagem andina, apreendida pelo poeta e diplomata em Quito, todas as outras estão representadas nas linhas temáticas existentes em Museu de tudo e, de modo geral, no conjunto da obra. 

Outra curiosa ligação que poderíamos estabelecer entre títulos se dá na aproximação da escola com educação pela pedra, para além de sua pedagogia. Ambos os livros são os que concentram a maior quantidade de dedicatórias, um elemento paratextual habitualmente ligado a uma esfera pessoal que parece passar despercebido em muitas leituras. Presentes desde Pedra do sono, embora de modo tímido, é um tipo de endereçamento que vai ganhando recorrência nos títulos posteriores, sobretudo como protocolo de amizade. É o que acontece nas dedicatórias a amigos, familiares e antepassados em A escola das facas, que não estão diretamente implicados no conteúdo do poema, à exceção de “A pedra do reino”, poema dedicado à Ariano Suassuna, que distingue o “sertão do sim” presente no “espaço mágico e feérico” criado por sua literatura, “fantástico espaço suassuna” (Melo Neto, 2014: 546), extrapolando o sentido da homenagem.  

A presença de dedicatórias num livro como A escola das facas reitera o traço autobiográfico ali presente, que é uma das suas tônicas. E não seria uma maneira de personalizar o poema, dando-lhe imediatamente um destinatário? É claro que tais vestígios não fazem a poesia de João Cabral menos despersonalizada, mas não deixa de ser um sinal que desperta suspeita. Se o poeta quer estar o mais afastado possível da sua criação, ou do compromisso sentimental do sujeito de que fala Santiago, ocultando todo e qualquer rastro circunstancial externo, por que incluiu algumas marcas acessórias que nada acrescentariam à leitura do poema? Esses pequenos furos parecem situar a presença do autor, que constantemente está a escapar, presente/ausente. A nosso ver, esses rastros, assim como a indicação de onde os poemas foram escritos – visível, por exemplo, ao fim da primeira edição de A educação pela pedra –, dão-nos importantes pistas para encontrarmos o autor. Na verdade, o que parece tão bem resolvido, estável, na obra cabralina – e, em certos sentidos, é – não é conquistado senão com muito esforço. E é justamente essa tensão que dá a dimensão de sua grandeza. Os poemas são objetos de conhecimento, mas também testemunhos da memória afetiva e das relações intelectuais de João Cabral, que não se furtou a dedicar muitos deles a companheiros de ofício – escritores ou diplomatas – e a pessoas próximas. 

No preciso diagnóstico feito por Silviano Santiago, há uma passagem que nos causa alguma reserva. Ao tratar da questão da despersonalização poética, na esteira do pensamento formulado por T.S. Eliot em “Tradição e talento individual”, o crítico defende que, no caso de João Cabral, tal efeito, ao lado de seu dogmatismo e autoritarismo estético, levou-o “a construir poemas onde as incertezas no trato com a realidade são excluídas, em favor de verdades irrefutáveis”. E, ainda, acrescenta: “Há em Cabral uma linguagem (e, portanto, um conhecimento) que exclui a dúvida; uma linguagem poética clara e transparente, certa e solar, impecável na sua lógica negativa, que possibilitou poemas dogmáticos e excludentes” (Santiago, 1982: 43). Para o crítico, A escola das facas é o momento da desdogmatização, no qual a visão antes simplificada, excludente e autoritária, torna-se diferenciada e complexa, enriquecendo a antilira cabralina. É o que já se observa, a nosso ver, em Museu de tudo, livro que propõe uma ruptura com o anterior, já que não visa superar a construção de A educação pela pedra, mas, em sentido oposto, realizar o contrário: reunir uma coletânea de poemas esparsos, dispersos. Algo que João Cabral dizia não fazer, inclusive criticava em outros autores.

Ainda que concordemos com a premissa do crítico, será que realmente há na poesia de João Cabral uma linguagem que exclui a dúvida? Do ponto de vista conceitual, a resposta poderia ser categórica: sim. Com o seu obstinado trabalho, disciplinado e rigoroso, edificou uma obra monumental, coerente, traduzida num estilo reconhecível que se tornou a marca da oficina cabralina. Se a “máquina do poema” nos transmite a solidez de sua estrutura, o leitor atento percebe que esse maquinismo, embora altamente funcional, apresenta um equilíbrio frágil. Sempre em luta consigo mesmo, testando os próprios limites, o poema é, em sua essência, incontrolável. Lembremos os versos de “Psicologia da composição”: “O poema, com seus cavalos, / quer explodir / teu tempo claro; romper / seu branco fio, seu cimento / mudo e fresco” (Melo Neto, 2014: 151). Por isso, comparado à intempestividade animal, a cavalos, potros ou touros que precisam ser contidos. 

É o que fica demonstrado em “O que se diz ao editor a propósito de poemas”, que na primeira edição de A escola das facas aparece como espécie de epígrafe, sendo colocado como poema de abertura na segunda edição: 

Ao contrário da impressão que nos passa, o poema não é tão facilmente dominado pela mão contida do poeta. Exige – e sempre exigiu – uma luta, corpo a corpo com as palavras, para que elas fossem adestradas, pois a contundência não está somente no resultado, no discurso, mas no próprio fazer-se. E é justamente aí que a linguagem de João Cabral admite a dúvida, na própria urdidura do poema. Porque o que veste as imagens do poema – a lembrança, ou a realidade, de acordo com Uma faca só lâmina – é muito mais intenso que a linguagem, “e tão violenta / que ao tentar apreendê-la / toda imagem rebenta” (Melo Neto, 2014: 298). 

Sem perder a contundência solar, a mensagem cabralina sempre percorreu os labirintos das dúvidas. Apesar de ser essencialmente um poeta do não, da negativa contundente, por vezes radical – estratégia que adotou na sua poesia e no discurso sobre a sua poesia, para se afirmar –, o sim e a incerteza estiveram constantemente em “duelo à pernambucana” na obra do poeta que se definiu na abertura da sua escola das facas como “incurável pernambucano”. 

Referências

FERRAZ, Eucanaã (Org.). (2021). Fotobiografia de João Cabral de Melo Neto. Coordenação Valéria Lamego. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora.

HOLANDA, Sérgio Buarque. (1952). João Cabral de Melo Neto. Diário Carioca, 3 de agosto de 1952.

MELO NETO, João Cabral de. (2014). Poesia completa João Cabral de Melo Neto. Organização, prefácio, fixação de textos e notas de Antonio Carlos Secchin. Lisboa: Glaciar.

SANTIAGO, Silviano. (1982). As incertezas do sim. In: Vale quanto pesa. São Paulo: Editora Paz e Terra, pp. 41-45.

A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições

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