
O Blog da BVPS dá continuidade à Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. Propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais.
No post de hoje, trazemos dois textos que se hospedam no ensaio “Repressão e censura no campo das artes na década de 70”, de Silviano Santiago. O primeiro, “O legado da censura”, é de autoria de Iracema A. de Alencar (UFRJ), e o segundo “Repressão e censura no campo das artes nas décadas de 2010-2020” é assinado por Sergio Schargel (USP).
É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.
Acompanhe as postagens da Hospedagem, sempre às segundas e quartas-feiras. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.
Boa leitura!
O legado da censura
Por Iracema A. de Alencar (UFRJ)
O escritor Silviano Santiago, no último ano da década de 1970, problematizou o sistema de censura e repressão aplicado pelos governos autoritários durante a ditadura civil-militar brasileira e o impacto dessa política nas artes. No capítulo “Repressão e censura no campo das artes na década de 70”, que integra o livro Vale quanto pesa, apesar do calor da hora, o autor faz uma abordagem pontual e precisa do que a censura tragou durante uma década (1969-1979). Considerando fundamental a historicização do processo lento de supressão dos mecanismos de censura no Brasil, chama a atenção para algumas características do período, tais como as dificuldades dos artistas em se manterem; a continuidade da produção artística apesar das pressões da censura – afinal, não publicar não significava que as ideias deixavam de ser colocadas no papel; a perda de informações pela sociedade, cujos cidadãos recebiam apenas uma visão do real, isto é, a representação da realidade elaborada pelo regime autoritário; e a presença de grande vácuo cultural na sociedade, interferindo, inclusive, na década seguinte.
Inicialmente, podemos afirmar que a prática de censura, apesar de ser associada ao regime autoritário implantado com o golpe civil-militar de 1964, é um fenômeno de longa duração no Brasil. Além disso, ela não obedece a um padrão de funcionamento, exceto pelo fato de que os governantes se utilizam de mecanismos de controle para impedir a circulação de informações que julgam contrárias aos seus interesses.
Nos anos de 1960, a censura era controlada pelo Serviço de Censura e Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública, muito parecido com departamento de censura do Estado Novo incrementado, agora, com o braço policial. A partir de 1968, com a decretação do AI-5 – que, em linhas gerais, colocava-se acima da Constituição de 1967 –, temos a passagem do poder político para “linha dura” do regime autoritário. Neste momento houve a sistematização da censura por meio da criação de normas censórias e da reestruturação do órgão. Em meados da década de 1970, buscou-se a adequação dos trâmites censórios ao processo de abertura política com a elaboração de importantes ações, como a descentralização da censura entre 1975 e 1978 e a implantação do Conselho Superior de Censura em 1979. Entretanto, essa fase durou pouco porque, de 1981 até início de 1985, houve um recrudescimento da atividade censória e uma retomada da censura política com a entrada de Ibrahim Abi-Ackel no Ministério da Justiça e a admissão de Solange Maria Teixeira Hernandes na direção da Diretoria de Censura de Diversões Públicas.
Durante o regime autoritário, o Serviço de Censura e Diversões Públicas alegava atuar na salvaguarda dos valores morais e na defesa da segurança nacional contra as ideias comunistas. Acreditava exercer uma “missão protetora” da sociedade, oposta à transformação dos costumes, e presumia expressar a vontade da maioria da população, com o apoio de setores conservadores.
Com o advento do AI-5, realizou-se a combinação de aspectos morais e elementos políticos como critérios norteadores da prática de censura. A censura passou a superdimensionar o conteúdo político e o impacto das obras censuradas. Com isso, apesar de considerarmos que a questão moral sempre encobre propósitos políticos, nesse período da história brasileira instaurou-se uma estrutura vigorosa e sistematizada, que adaptou o mecanismo de controle para atender a objetivos específicos dos governos. Baseando-me no historiador Robert Darnton (2016), posso dizer que o aparato censório foi aplicado como uma estratégia legitimadora de um sistema de dominação do Estado, que atuava por meio de múltiplos agentes para impor sanções contra a livre circulação de ideias.
Duas importantes questões são diretamente associadas às ações de censura: um possível “esgotamento das artes” e a autocensura. Sobre a possibilidade de uma perda de qualidade das manifestações artísticas, Silviano Santiago (1982) observa um vácuo que não estava apenas no campo das produções artísticas, mas na sociedade como um todo. As restrições, cortes e vetos da censura produziram impedimentos reais de difusão, restando para a arte um tempo interdito: espaço de espera por um público ou um momento para acontecer.
Um exemplo desse efeito nocivo da censura é identificado pelo cantor e compositor Chico Buarque que, em depoimento publicado no ano de 1981, atesta o quanto a atuação da censura prejudicou sua criação. No livro Censores de pincenê e gravata – dois momentos da censura teatral no Brasil, de Sonia Salomão Khéde (1981), ele observa:
isolar um artista, um criador do resto da cultura. Acho que a cultura brasileira toda foi muito afetada esse tempo todo; o próprio público ficou emburrecido, menos exigente. O artista, com o trabalho da censura, corre o risco de ter um álibi até para se esforçar menos. Ou o artista é até obrigado a fazer ginásticas incríveis, usar metáforas, às vezes, que, com o passar do tempo, parecem ridículas… Era a pressão que atuava sobre a criação, no ato mesmo da criação.
O crítico e professor de teatro Yan Michalski publicou em 1979 o Palco amordaçado, obra em que elaborou uma pequena memória das perdas do teatro causadas pelo regime autoritário: companhias desfeitas, projetos interrompidos e o mais grave de tudo seria o esgotamento de novas formas de linguagem cênica. “O castramento da dramaturgia a torna pouco motivadora para o prosseguimento de experiências inovadoras”, diz ele. Em relação a um possível esgotamento da linguagem cênica, identificado pelo teatrólogo, acredito que ela se relacione com a dinâmica da censura ao teatro, já que o processo censório envolvia a análise do texto teatral por três censores, que fariam cortes, mudanças de palavras e intervenções, baseados no arcabouço legal que os amparava. Além disso, os censores compareciam ao ensaio geral, momento em que eles assistiam à encenação do texto teatral, podendo também fazer comentários, cortes e modificações na performace.
Nesse período, para conseguir autorização da Diretoria de Censura de Diversões Públicas para apresentação de uma peça, era necessário passar por essas etapas e ser aprovado. Possivelmente, com tantas intervenções, o trabalho sofria um esvaziamento de ideias, de possibilidades cênicas, acentuadas por outro agravante: a autocensura. Sabendo que o material produzido teria que passar por um processo de censura, muitos produtores e autores optavam por produções mais “de acordo” (no sentido de uma normalidade imposta por um regime autoritário).
A percepção de uma geração com lacunas em sua formação intelectual, mencionada por Silviano Santiago (1982) e nomeada por Luciano Martins como “geração AI-5” em artigo do mesmo período, também é visível nas análises de Yan Michalski (1994). No campo do teatro, os anos 1980 são descritos como um período marcado por um considerável esvaziamento da vitalidade criativa, caracterizado pela chamada “crise da transição”. A formação do público foi prejudicada pela censura, que limitou a produção e o acesso às artes. A juventude que moldou seu intelecto durante o funcionamento de um sistema que sequestrou a realidade e ofereceu uma representação distorcida do real, possivelmente ficou com um hiato em sua concepção intelectual.
A conclusão compartilhada é a de que a crise se instalou pelo prolongamento da condição de transição do regime político. Soma-se a isso, a morte prematura de expoentes do teatro, entre eles Cacilda Becker – importante atriz que, em luta contra a repressão e em defesa dos artistas, foi presidente da Comissão Estadual de Teatro de São Paulo – e Oduvaldo Vianna – um dos mais engajados dramaturgos. Para Michalski, na ausência de personalidades cuja voz pudesse servir de referência, acentuou-se a tendência ao individualismo e à acomodação.
Outra consequência da ação da censura, que teve grande impacto na produção artística e na formação das bases intelectuais e culturais de uma geração, foi a autocensura. A dinâmica da autocensura foi uma prática adotada por muitos artistas durante o regime autoritário. Para o artista manter sua posição, enquadrar-se no sistema aparecia como uma possibilidade, mesmo que essa escolha o tornasse agente e objeto da repressão.
Os artistas, tendo seus trabalhos vetados ou censurados com cortes e modificações, buscavam táticas discursivas para conseguirem a certificação da Divisão de Censura e Diversões Públicas, o que permitiria a liberação de seus trabalhos. Verifica-se que os procedimentos de interdição no discurso provocam o controle da palavra, que faz dizer ou silenciar. Com isso, torna-se evidente a dimensão política que não só a palavra assume, mas os silenciamentos e as ausências na produção textual e na encenação.
Após anos de aplicação de vetos, o sistema de censura considerava a autocensura como um resultado positivo de suas ações. Uma interessante evidência dessa expectativa foi a liberdade concedida pela censura para algumas redações de jornais em 1975. Permitir que as notícias fossem publicadas sem leitura prévia era um “possível teste” para saber se os jornalistas estariam preparados, ou melhor, se tomariam a decisão “acertada” de seguir o discurso do regime autoritário.
Como afirmou Darnton (2016), “o poder que a censura tem vai além da obra censurada, ela produz um grupo de autores que se autocensuram, muitas vezes até inconscientemente. A autocensura é um aspecto muito importante da censura propriamente dita”. Portanto, no que se refere à censura, não se pode dizer que existiu uma prática mais ou menos tolerável, uma vez que todas são igualmente nocivas.
Referências
DARNTON, Robert. (2016). Censores em Ação – como os Estados influenciaram a literatura. São Paulo: Cia das Letras.
KHÉDE, Sonia Salomão. (1981) Censores de pincenê e gravata – dois momentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri.
MICHALSKI, Yan. (1979) O palco amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir.
MICHALSKI, Yan. (1994). “A crise do teatro dentro da crise maior”. In: SOSNOWSKI, Saúl & SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Brasil: o trânsito da memória, São Paulo, Edusp, pp. 114-120.
SOARES, Gláucio Ary Dillon. (1989). A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 4, n. 10, pp. 21-43.
Repressão e censura no campo das artes nas décadas de 2010-2020
Por Sergio Schargel (USP)
Na década de 1980 houve um abandono gradativo do grande acontecimento político como pano de fundo para poemas e romances (Silviano Santiago, 1989).
Em setembro de 2019 o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, em uma tentativa de apelar para um público religioso e afastar os holofotes dos escândalos políticos em que estava envolvido, perseguiu e mandou retirar da Bienal do Livro uma história em quadrinho da Marvel que mostrava dois homens se beijando. No ano anterior, um colégio no Rio de Janeiro proibiu Meninos sem pátria, de Luiz Puntel, acusado de “doutrinação comunista” (Pires, 2018). Já em 2020, um desembargador tentou proibir uma empresa privada de veicular um especial de Natal da produtora Porta dos Fundos – mesmo após ela ter sido vítima de um ataque a bomba por militantes integralistas –, ante o argumento de que o produto ofendia a moral da “maioria cristã” (Oliveira, 2020). Também em 2019, o então Ministro da Cidadania, Osmar Terra, declarou que “O perfil vai ser mais conservador. Obra de arte é obra de arte. Se for arte e não for só pornografia, vai ser respeitado. É preciso entender isso como uma transição” (Trindade, 2019).
Os inúmeros exemplos possíveis, dos quais destacamos apenas alguns, ilustram o quanto a censura e a repressão permanecem, mais de quatro décadas após a publicação de Vale quanto pesa, de Silviano Santiago (1982). Tanto mais, ilustram o quanto se mantém a cultura política autoritária no Brasil. O pequeno pastiche no título deste trabalho intenciona justamente passar a ideia desta continuidade – de como, mesmo no período de maior extensão democrática nacional, a tradição sobrevive.
É claro que há diferenças entre as formas de censura, da mesma forma que o próprio autoritarismo também se modificou. Não há um aparato governamental organizado como durante a Ditadura,[1] e a repressão aparece de forma difusa, espalhada, diluída. Mas aparece. E recrudesce durante a virulência do governo Bolsonaro. Não somente uma censura vinda do próprio governo, mas mesmo da sociedade civil. Talvez ainda mais intenso, a autocensura. Certos temas se tornaram delicados, evitáveis. Tocá-los seria mexer em um vespeiro. Como podem professores tratarem de temas políticos, como a própria Ditadura Militar, quando ao menor sinal se reclamação dos pais seus empregos passam a correr risco? Mas a censura também causa um efeito perverso em sua lógica distorcida.
Segundo a tipologia de Albert Hirschman (2019), o efeito perverso ocorre ao proporcionar um acontecimento contrário ao que se desejava inicialmente (Schargel, 2022). Se por um lado a repressão promove um silenciamento ou autossilenciamento, por outro também suscita interesse sobre os reprimidos. Não é coincidência o boom de obras artísticas sobre períodos de cerceamento democrático. Em paralelo às tentativas do Bolsonarismo e dos bolsonaristas em atacar a arte, pululavam obras sobre o fenômeno. Obras de alguns escritores mais corajosos e apelativos para o público maciço que se colocou contra o movimento, como é o caso de A nova ordem, de Bernardo Kucinski.
Se é verdade que a censura pode impedir que o trabalho artístico chegue a alguns autores, também o é que ela levanta o interesse sobre ele, como Santiago (1982) já havia notado em seu texto. Eis a grande diferença da censura na década de 1970 para a censura de hoje: a ausência de um aparelhamento completo do Estado impede que os mecanismos de repressão forcem a adoção de uma estética do subterfúgio por parte dos autores. Seus trabalhos podem ser perseguidos, mas não impedidos por completo como no momento maior do autoritarismo brasileiro. Isso sem mencionar o potencial de difusão digital.
Ainda assim, cumpre pensar na permanência dessa cultura política e do seu impacto sobre as artes. A democracia nacional sobreviveu, ao menos por enquanto, ao seu período de maior crise desde o estabelecimento da Nova República. Ao que parece, aos poucos se caminha para uma retomada da normalidade institucional. No entanto, a cultura política virulenta permanece e permanecerá não só no establishment político, mas também na sociedade civil. Por mais que a tendência lógica seja uma migração da extrema direita de volta para os padrões anteriores, uma espécie de fusão da nova com a velha direita, o fantasma do Bolsonarismo permanecerá uma constante por muito tempo.
Como notou Robert Paxton (1998), o fascismo é, a longo prazo, insustentável. Por precisar de mobilização permanente, acaba por seguir dois caminhos possíveis: a autodestruição ou a “normalização”. Ou implode, ou acaba absorvido pela direita tradicional. Este é o momento em que parece se encontrar o Bolsonarismo. Ainda é cedo para afirmar se isso será ou não revertido, mas é inegável o esvaziamento político do outrora Messias. Um Bolsonarismo sem Bolsonaro é o cenário mais provável para os próximos anos, bem como a sua migração de movimento fascista para o conservadorismo inerente à política brasileira. Semelhante ao que ocorreu com o Integralismo, por exemplo, que foi pouco a pouco se enfraquecendo, mas nunca desapareceu por completo.
Sendo assim, no contemporâneo não há o impacto, referido por Santiago (1982: 49), da proibição completa de circulação de uma obra. Há outros tipos de impactos financeiros e econômicos sobre o artista, como a proibição de captação de recursos ou financiamento de uma obra considerada “subversiva”, ou, para utilizar o vocabulário bolsonarista, “pornográfica”. Mas ele permanece tendo opções, como a busca por financiamento coletivo ou difusão digital. Foram desbaratados os mecanismos que faziam com que uma obra permanecesse no limbo por anos.
O efeito perverso da censura contemporânea faz com que uma obra encontre recepção mista em uma nação dividida – dividida, não polarizada, importante ressaltar, pois polarização pressupõe uma disputa legítima entre adversários opostos comprometido com os ideais democráticos (Reis & Schargel, 2021). Tomemos o exemplo do Queermuseu, a exposição no Santander Cultural que mobilizou o debate público quando o Movimento Brasil Livre (MBL) começou a persegui-la em 2017. É verdade que o ataque da extrema direita fez com que a exposição fosse fechada em Porto Alegre e rechaçada de ser reeditada no Museu de Arte do Rio (MAR) por Crivella. Mas não muito depois, a exposição aportou na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, também no Rio, por meio de financiamento coletivo. Ou seja, a sua censura gerou um movimento social de contracensura e divulgação que fez com que a exposição provavelmente fosse mais vista e falada do que seria inicialmente. Da mesma forma, o especial do Porta dos Fundos, referido acima, provavelmente alcançou uma repercussão que não teria sem as agressões que sofreu. Em ambos os casos a perseguição teve, portanto, efeito contrário ao que desejava, confirmando a sabedoria popular de que toda censura é burra.
A censura sempre acabou por suscitar interesse no material, como notou Santiago (1982: 50). Todavia, antes esse interesse só conseguia ser capitalizado muito depois, quando a obra enfim fosse liberada. Agora, a inexistência de mecanismos iguais aos da Ditadura, pela própria permanência do Estado democrático (por mais esvaziado que tenha sido entre 2018 e 2022), faz com que agora o artista possa colher os frutos desse efeito perverso quase de imediato. Mas como o próprio nome do conceito deixa claro: é perverso. Artista nenhum vai desejar se sujeitar à repressão ante a possibilidade da reação fazer crescer o interesse em sua obra, e não espere encontrar neste texto qualquer apologia da prática, apenas a afirmação de que a censura fracassa até em seu objetivo, principalmente quando praticada em uma democracia.
Sobre esse ponto, é preciso fazer uma pequena digressão. A extrema direita também fala em censura e aponta autoritarismo nos outros. Quando convém, são rápidos em afirmar defesa da liberdade de expressão. No entanto, há uma diferença fundamental: a defesa que fazem é pontual, concentrada, irrestrita ou contraditória. Ou afirmam, como no caso dos libertários, que a liberdade deve ser absoluta – o que inclui, portanto, liberdade de manifestações autoritárias ou até mesmo nazifascistas –, ou usam o argumento conforme a conveniência. Quando falam em censura, referem-se à reação institucional contra atentados às próprias instituições, como os processos jurídicos contra notícias falsas. Para alguns, censura implica em qualquer mínimo controle sobre a pretensão de uma liberdade ilimitada. Bastante diferente, assim, da repressão sobre o campo da arte. Ninguém fala, por exemplo, em proibir obras de arte da extrema direita.
Por ser um processo gradual, não se espera que a tradição autoritária desapareça da noite para o dia na população. Resquícios do Bolsonarismo permanecerão mesmo quando este não for mais do que um triste fragmento nos livros de História. Tentativas de censura sobre a arte, principalmente ao nível local – seja com escolas que proíbem conteúdo “subversivo” ou políticos que desejam capitalizar polêmica em algum momento de crise –, não desaparecerão. Eventos pontuais ao nível nacional também ocorrerão. A autocensura se manterá em algum nível, e temas considerados “polêmicos”, como a política – fruto do mito arraigado na população de que “política não se discute” –, ainda serão evitados. Quem perde, como lembra Santiago (1982: 51), é a própria sociedade civil que coíbe e poda esses autores. Um círculo vicioso, em que o autoritarismo gera a censura, que amordaça novas artes e, por fim, impede que se fragilize o próprio autoritarismo por meio do pensamento crítico. Contudo, a não ser que surja um novo ou retorne um velho autoritarismo de Estado, é improvável que a estética do subterfúgio retorne a ser predominante como mecanismo de autodefesa artístico.
Nota
[1] Neste texto, bem como em outros escritos, escolhi colocar Ditadura Militar em maiúscula para diferenciar o movimento/regime único do Brasil da ideia de “ditadura militar” como conceito genérico. Da mesma forma, o Fascismo de Benito Mussolini é referido em maiúscula, enquanto fascismo como ideologia/conceito aparece em caixa baixa.
Referências
HIRSCHMAN, Albert. (2019). A retórica da intransigência: perversidade, futilidade e ameaça. São Paulo: Companhia das Letras.
KUCINSKI, Bernardo. (2019). A nova ordem. São Paulo: Alameda.
OLIVEIRA, Joana. (2020). Desembargador do Rio manda retirar especial do Porta dos Fundos do ar citando o bem da “maioria cristã”. El País, 08 jan. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-01-08/desembargador-do-rio-mandar-retirar-especial-do-porta-dos-fundos-do-ar-para-acalmar-animos.html. Acesso em: 11 abr. 2023.
PAXTON, Robert. (1998). The five stages of fascism. The Journal of Modern History. Chicago: Chicago University Press, v. 70, n. 01, pp. 01-23.
PIRES, Breiller. (2018). “Meu livro é sobre a ditadura. Jamais pensei que seria censurado”, diz autor de ‘Meninos Sem Pátria’. El País, 05 out. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/04/cultura/1538677664_945391.html#?rel=listaapoyo. Acesso em: 11 abr. 2023.
PUNTEL, Luiz. (2019). Meninos sem pátria. São Paulo: Ática.
REIS, Guilherme Simões & SCHARGEL, Sergio. (2021). Não há nada mais democrático do que a polarização. Nexo. 30 de maio de 2021. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/N%C3%A3o-h%C3%A1-nada-mais-democr%C3%A1tico-do-que-a-polariza%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 12 jan. 2023.
SANTIAGO, Silviano. (1989). Nas malhas das letras. São Paulo: Companhia das Letras.
SANTIAGO, Silviano. (1982). Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
SCHARGEL, Sergio. (2022). The rhetoric of reaction. Contexto Internacional, v. 44, n. 03, Sep./Dec.
TRINDADE, Naira. (2019). Osmar Terra: ‘Para dirigir a Ancine tem que entender de cinema, sendo evangélico ou não’. O Globo, 03 set. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/osmar-terra-para-dirigir-ancine-tem-que-entender-de-cinema-sendo-evangelico-ou-nao-23925074. Acesso em: 11 abr. 2023.
A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições