
Em nova atualização da Série Nordeste BVPS, Karim Helayel (UFRJ) compartilha sua aula “Celso Furtado e Josué de Castro entre as ideias e a ação”. A aula discute como Furtado e Castro trataram os problemas que afligiam a população nordestina, com destaque para dois de seus trabalhos: o famoso livro Geografia da fome, de Castro, publicado em 1946, e o texto “A Operação Nordeste”, de Furtado, de 1959. Como mostra Helayel, apesar de suas diferenças, os dois autores não apenas se preocupam com a explicação dos problemas do Nordeste, como pensaram em políticas públicas consistentes para a região.
A aula será ministrada amanhã, dia 26 de maio, na Graduação de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, e está sendo divulgada no Blog da BVPS como parte do experimento que relaciona ensino e comunicação pública das ciências sociais.
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Boa leitura!
Celso Furtado e Josué de Castro entre as ideias e a ação
Por Karim Helayel (UFRJ)
Introdução[1]
– A articulação entre formulações teóricas e a construção de projetos de mudança social constitui preocupação recorrente da intelectualidade situada na periferia do capitalismo e, mais especificamente, da intelligentsia brasileira. A despeito dos diversos sentidos assumidos, tal articulação teria sido, seguindo o raciocínio de Daniel Pécaut (1990), uma espécie de marca, em um sentido mais amplo, entre nossos intelectuais. Os anos 1950 e 1960 foram marcados por tentativas de construção de políticas públicas de desenvolvimento, que permitissem o enfrentamento dos diversos problemas sociais atravessados pelo país. Este contexto se encontra referido a um momento histórico onde talvez a melhor imagem que defina a sociedade brasileira da década de 1950 seja, nas palavras de André Botelho (2008), a de uma “sociedade em movimento”. Temas cruciais como “industrialização” e “desenvolvimento”, bem como aquele que se refere à formação dos atores sociais característicos de uma ordem urbano-industrial, informaram decisivamente as formulações de diversos intelectuais durante o período.
– Não foi diferente com o médico e geógrafo Josué de Castro e o economista Celso Furtado, que diagnosticaram o problema do “subdesenvolvimento” em seus trabalhos, de modo a forjar prognósticos consistentes que pudessem contribuir para sua resolução. Os trabalhos que serão discutidos nesta aula procuram tratar da problemática do “subdesenvolvimento”, que mobilizou a intelectualidade do período, interpelando de modo contundente a Castro e Furtado. Ambos construíram interpretações do Brasil potentes, articulando, nesse sentido, suas análises à construção de proposições com vistas à alteração do cenário desfavorável no qual boa parte da população brasileira e, particularmente nordestina, encontrava-se inscrita.
– Fio condutor: o objetivo desta aula será discutir o modo pelo qual os autores em tela trataram os problemas que afligiam a população nordestina, com destaque para dois trabalhos de Josué de Castro e Celso Furtado, que podem auxiliar nesse tipo de leitura: o famoso livro Geografia da fome, de Castro, publicado originalmente em 1946, e o texto “A Operação Nordeste”, de Furtado, que formaliza sua apresentação realizada em 13 de junho de 1959 no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). O argumento que será discutido é o de que, tanto em Geografia da fome quanto em “A Operação Nordeste”, Josué de Castro e Celso Furtado não apenas se preocupam com a identificação dos problemas e dos males que afligem o Nordeste, mas têm em vista a definição de políticas públicas consistentes para a região.
– Teoria, história e a construção de projetos de mudança social: tendo em vista o tipo de recorte proposto para a aula, deve-se ressaltar que, desde os mais famosos ensaios de interpretação do Brasil, a incorporação da relação entre teoria e história teria sido algo recorrente entre nossos intelectuais, que não deixaram de lado a articulação entre as dimensões da diagnose e da prognose. De acordo com Elide Rugai Bastos (2005), o vínculo entre teoria e história pode ser encontrado em diferentes ensaios, publicados na década de 1930, com destaque para os clássicos trabalhos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Embora adotem interpretações algo distintas sobre o passado local, orientando-se por instrumentos analíticos diversos, a combinação entre história e sociologia promovida por tais ensaístas visa não apenas à explicação da formação do país, como também “assume função política e define o modo pelo qual a utilizam não só como forma de desvendamento da realidade, mas como proposições para alterá-la” (Bastos, 2005: 20). Ainda que não fossem sociólogos de formação, não seria exagero argumentar que tanto Castro quanto Furtado se valem, ainda que de modos distintos, da relação entre suas formulações teóricas e a história para a construção de suas análises, forjando-as de modo a atribuírem densidade à elaboração dos prognósticos propostos,[2] que viabilizariam a construção efetiva de projetos de mudança social para a região Nordeste. Em outras palavras, mais do que propriamente intervir na realidade, o que parece mobilizar Castro e Furtado, malgrado suas diferenças, é a preocupação em delinear as diretrizes para um projeto de mudança social do Nordeste, de modo a dirimir os males que afetam a região.
I. Josué de Castro
Geografia da fome (1946)
1. Josué de Castro e o mapa da fome
1.1. Como indica Silvio Almeida (2022), em Geografia da fome, Josué de Castro procura tratar a fome como um fenômeno histórico, ao apresentar uma análise complexa da organização socioeconômica na contemporaneidade. E esse movimento empreendido por Josué de Castro, ao enfatizar o tratamento analítico do problema da fome, não constitui movimento trivial, haja vista que, no prefácio à primeira edição de Geografia da fome, o médico e geógrafo chama a atenção para a exiguidade da literatura sobre o tema. Exiguidade essa que, a seu ver, encontrava-se ancorada em fundamentos morais, que teriam em vista o “fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana” (Castro, 2022: 18-19).
1.2. Além de fundamentos morais, o autor destaca os interesses econômicos dos grupos sociais dominantes como um fator preponderante para obnubilar o tema da fome, uma vez que interessaria ao comércio internacional que o circuito produção, distribuição e consumo de alimentos se mantivesse circunscrito ao âmbito econômico, e não fosse entendido como um problema de saúde pública (Castro, 2022). A preocupação de Josué de Castro não tem em vista, desse modo, tratar a fome como um tema crucial passível de compreensão e explicação stricto sensu, mas estudado, haja vista o objetivo de construção de políticas públicas eficazes para solucioná-lo. Ou seja, Geografia da fome parece ser trabalho representativo do vínculo entre ideias e ação política da intelectualidade, inscrevendo o autor no rol de intérpretes que não se preocuparam apenas em compreender e explicar a nossa formação social, mas intervir efetivamente na realidade através da construção de projetos consistentes de mudança social.
1.3. Sendo assim, o objetivo de Josué de Castro é analisar o fenômeno da fome coletiva, que atinge endêmica ou epidemicamente grandes grupos humanos, tendo em vista ainda a chamada “fome parcial”, caracterizada não pela inanição extrema, mas pelo déficit de certos aspectos nutritivos na dieta, o que leva determinados grupos populacionais a morrerem lentamente de fome, malgrado se alimentarem diariamente. Como evidencia Castro (2022: 25), é sobretudo “o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho”.
1.4. Assim, Josué de Castro lança mão da comparação como recurso fundamental para analisar as diferentes formas através das quais o déficit nutricional da população brasileira se manifesta. No entanto, o autor não confina sua interpretação à atuação de fatores climáticos ou mesológicos, chamando a atenção fundamentalmente para a cultura e para as relações sociais, mais precisamente, para as formas de organização da produção no Brasil. De acordo com Castro, o Brasil disporia de ampla variedade de “quadros climatobotânicos”, que possibilitaria nutrir a população de forma racional e abundante, porém fatores vinculados à nossa estrutura socioeconômica teriam inviabilizado recorrentemente o aproveitamento racionalizado das possibilidades geográficas do território. O país seria, na visão do médico e geógrafo, uma espécie de ponto de vista privilegiado para uma reflexão em torno do problema da fome, valendo-se da comparação como recurso fundamental para a construção de proposições mais gerais, uma vez que, a partir da pluralidade apresentada pelas diferentes regiões do Brasil, poder-se-ia formular “generalizações até certo ponto válidas para inúmeras outras regiões tropicais do mundo” (Castro, 2022: 32).
1.5. Ao subdividir as cinco diferentes áreas que formariam o mosaico alimentar brasileiro, Josué de Castro aponta que, ao lado da área amazônica, a zona da mata e o sertão nordestino constituiriam “áreas de fome”. Apesar de apresentarem certas deficiências, o Centro-Oeste e o Centro-Sul não padeceriam com déficits nutricionais tão acentuados, o que as caracterizariam como “áreas de subnutrição”. No entanto, a despeito da pluralidade da cartografia da fome delineada por Castro, vale a pena pensarmos a situação do Nordeste, foco da disciplina e da Série Nordeste BVPS, para discutirmos suas propostas de intervenção em relação aos prognósticos de Furtado.
2. O Nordeste, por Josué de Castro
2.1. Como discute Josué de Castro, o Nordeste poderia ser pensado a partir de dois retratos, a mata e as secas, que podem ser tomados como pontos de orientação para o estudo da fome na região. Para o autor, mais do que as secas enfrentadas constantemente por parte do Nordeste, o que acarretaria o grave problema da fome seria “o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva de suas populações, cuja produtividade é mínima e está longe de permitir a formação de quaisquer reservas com que seja possível enfrentar os períodos de escassez, os anos das vacas magras, mesmo porque no Nordeste já não há anos de vacas gordas” (Castro, 2022: 263-264). Ou seja, em um contexto no qual comumente os problemas referentes à “pobreza” e ao “atraso” eram atribuídos às origens étnicas e climáticas, Castro entendia que sua causa residiria em razões de ordem social (Andrade, 1997).
2.2. Castro (2022: 265) assinala, desse modo, o imperativo da luta contra o subdesenvolvimento no Nordeste, mais especificamente, a luta contra a monocultura e o latifúndio, estruturas socioeconômicas decorrentes, nas suas palavras, do “feudalismo agrário e da subcapitalização na exploração dos recursos naturais da região”. Não bastariam planos de combate às secas per se, uma vez que o prognóstico delineado por Castro (2022: 265) destaca que a luta contra a fome demandaria uma “reforma agrária racional que liberte suas populações da servidão da terra, pondo a terra a serviço de suas necessidades” (Castro, 2022: 265). Em suma, a reforma agrária constitui prognóstico fundamental para o autor, ao contribuir para a resolução dos problemas referentes à fome, de modo a libertar “suas populações da servidão da terra, pondo a terra a serviço de suas necessidades” (Castro, 2022: 265).
2.3. Sendo assim, na luta contra o subdesenvolvimento e, mais especificamente, contra o latifúndio e a monocultura, problemas recorrentemente tratados em diferentes interpretações do Brasil, Castro atenta para a necessidade de uma reforma agrária, que beneficie a população campesina, posto que no arcaísmo de nossa estrutura fundiária residiria o problema do desemprego, fator fundamental para a prevalência da fome na região. Com isso, Castro menciona brevemente a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), demonstrando certa esperança nas possibilidades abertas por sua fundação. Contudo, apresenta divergências com alguns dos princípios que a forjaram, como, por exemplo, sua suposta ênfase no entendimento de que o subdesenvolvimento do Nordeste seria produto de sua base física, advogando ainda o deslocamento de certos excedentes populacionais.
2.4. Castro efetua, portanto, uma contundente crítica daquilo que qualifica como “aventura mercantil”, que conteria um caráter predatório em diversos momentos da história brasileira, desenvolvendo-se, no Brasil, certa “vocação oceânica” exportadora da riqueza potencial do país por preços irrisórios. Nas palavras de Castro (2022: 287): “Orientada a princípio pelos colonizadores europeus e depois pelo capital estrangeiro, expandiu-se no país uma agricultura extensiva de produtos exportáveis ao invés de uma agricultura intensiva de subsistência, capas de matar a fome do nosso povo”. Para Castro (2022: 287), os interesses estrangeiros teriam logrado predominância, ao orientar nossa economia para “a exploração primária da terra e para a exportação de matérias-primas assim obtidas”.
2.5. O autor discute, dessa forma, o sentido do desenvolvimento brasileiro, uma vez que sua ênfase teria consistido no desenvolvimento das regiões mais desenvolvidas do país, sem a preocupação com a efetiva integração das áreas entendidas como marginais, como são os casos do Nordeste e da Amazônia. Na visão de Castro, o caso do Nordeste seria o mais preocupante, haja vista que, até então, a região concentraria um terço da população do país, cuja precariedade das condições de vida seria marcadamente acentuada. Para o médico e geógrafo, deveria haver um esforço concentrado das regiões mais desenvolvidas do Brasil no intuito de cooperação para a emancipação das regiões mais pobres, movimento que se daria em benefício do país como um todo. As divisas geradas pelos principais produtos primários do Nordeste não estariam beneficiando amplamente a região, posto que boa parte delas seriam drenadas pelo Estado, a fim de “equipar a indústria do Sul e às vezes, ainda pior, para cobrir a importação de produtos de luxo, ostentatórios […] com que os países subdesenvolvidos pensam cobrir sua miséria, mas apenas evidenciam de forma mais gritante o seu subdesenvolvimento” (Castro, 2022: 292).
2.6. Castro argumenta a favor da atenuação da disparidade entre as diferentes regiões do país, reivindicando uma distribuição mais equânime das riquezas e um critério mais equilibrado para os investimentos tanto nas diversas regiões quanto nos diferentes setores da economia. Ou seja, a dependência surge como problema fundamental a ser resolvido, pois seria a economia de “dependência total” do Nordeste e da região amazônica em relação ao sistema econômico de outras áreas do Brasil que contribuiria, junto ao desnível setorial entre as economias agrícola e industrial, para a manutenção da fome.
2.7. Desenvolvimento econômico como prognóstico: para Castro (2022: 302, grifos do autor), a política de desenvolvimento constitui uma “necessidade histórica”, uma espécie de imperativo em relação ao qual o país não poderia se furtar. A ideia seria promover ainda uma economia planificada, que atuasse efetivamente sobre todo o sistema econômico, evitando desequilíbrios entre os diferentes setores. Para o autor, o desenvolvimento da indústria brasileira seria somente viabilizado mediante a concomitante expansão e consolidação do setor primário.
2.8. Castro destaca, nesse sentido, a ausência de um mercado interno capaz de absorver a produção industrial, o que o conduz a uma reflexão sobre a necessidade da integração do campesinato. O Nordeste seria o mais grave de nossos problemas, que ameaçaria não somente a economia do país, como também a segurança nacional, emergindo o chamado dilema do pão ou do aço, decisivo para suas reflexões. Nas palavras do autor:
Ao promover o desenvolvimento econômico do país fica o governo um tanto perplexo diante do dilema do pão ou do aço, ou seja, de investir suas escassas disponibilidades na obtenção de bens de consumo ou de concentrá-las na industrialização intensiva, sacrificando durante um certo tempo as aspirações da melhoria social da coletividade (Castro, 2022: 304, grifos do autor).
2.9. Para Castro, a resolução do dilema não se encontraria na concentração de esforços sobre o pão ou o aço, mas no seu atendimento concomitante, conferindo atenção a ambos os polos e levando em consideração as circunstâncias sociais e as disponibilidades econômicas correntes. Para que o desenvolvimento econômico seja efetivamente levado a cabo, o governo não somente teria que estar atento às necessidades dos grupos sociais atuantes no setor agrícola, mas promover, sobretudo, “uma melhor distribuição regional em matéria de crédito e investimentos a fim de que o gigante brasileiro não venha a crescer capenga ou torto” (Castro, 2022: 305). Assim, Castro (2022: 307) se opõe ao que considera o arcaísmo da estrutura agrária brasileira, marcada por relações de produção de “tipo feudal”, nas quais perdurariam as “sobrevivências do feudalismo agrário”. A estrutura agrária arcaica calcada na monocultura e no latifúndio seria, desse modo, o principal fator para a predominância da fome enquanto problema crucial na formação social brasileira. Não à toa, a reforma agrária surge, como discutimos, como uma “necessidade histórica nesta hora de transformação social que atravessamos: como um imperativo nacional” (Castro, 2022: 309, grifos do autor).
II. Celso Furtado
“A Operação Nordeste” (1959)
1. Celso Furtado e a transformação estrutural do Nordeste
1.1. Para pensar os problemas enfrentados pelo Nordeste, Celso Furtado[3] (2009: 30) destaca um problema fundamental do desenvolvimento econômico, que se refere à criação de desigualdades, chamando a atenção para o que ele entende como a “lei da concentração”. O economista paraibano ressalta que o mais grave problema brasileiro consistiria nas disparidades regionais que vinham sendo gestadas com o processo de desenvolvimento urbano-industrial, que teria a tendência de acentuá-las. O autor aponta para a relação entre industrialização/desenvolvimento econômico e concentração de renda, uma vez que poderia ser identificado no Brasil problema similar ao da economia mundial, a saber, uma certa geopolítica que coloca, de um lado, as metrópoles industrializadas e, de outro, as colônias produtoras e exportadoras de matérias-primas. Furtado argumenta que as relações entre as economias industrializadas e as economias primário-exportadoras engendrariam, inevitavelmente, formas de exploração, que inibiriam o desenvolvimento das últimas. Tendo em vista o problema, o autor discute as propostas de intervenção da Operação Nordeste, posto que a região seria, nas suas palavras, o “sistema subdesenvolvido mais importante do Brasil” (Furtado, 2009: 32).
1.2. Com isso, Furtado empreende o movimento de construção de um diagnóstico para a região, no intuito de propor uma política de desenvolvimento consistente, que teria a Sudene como promotora fundamental. A Sudene teria como objetivo a promoção do processo de industrialização do Nordeste, contribuindo ainda para o combate à miséria e aos conflitos que se espraiavam pela região e que inquietavam o então presidente Juscelino Kubitscheck, receoso com possíveis ameaças à democracia e à soberania do país (Mendes, 2017). Contudo, argumenta, alguns problemas emergem no processo, como, por exemplo, certas dificuldades de ordem administrativa. Para Furtado, o Estado não se encontraria suficientemente aparelhado para que pudesse vir a resolver problemas econômicos cruciais, o que se aplicaria ao problema para cuja resolução a Operação Nordeste foi criada.
1.3. Assim, Furtado chama a atenção para o imperativo da realização de uma reforma administrativa, que seria fundamental para que a implementação de políticas públicas de desenvolvimento pudesse lograr êxito no Nordeste. Portanto, a Sudene surge como um órgão que teria dois objetivos complementares, a saber, nas palavras de Furtado (2009: 35), “dar ao governo um instrumento que o capacite a formular uma política de desenvolvimento para o Nordeste e, ao mesmo tempo, o habilite a modificar a estrutura administrativa em função de novos objetivos”. Como afirma Furtado (2009: 167), em seu “Discurso de posse na Sudene” como superintendente, sua criação tinha como objetivo conferir ao governo as ferramentas necessárias para o exercício de sua “funcionalidade como instrumento promotor do desenvolvimento”.
2. Diagnose e prognose
2.1. Mobilizando a história do Nordeste como recurso heurístico, Furtado destaca a monocultura e o latifúndio como dois fenômenos que se encontrariam vinculados ao modo pelo qual a economia do açúcar teria se desenvolvido na zona úmida da região. Além disso, a economia do Nordeste teria promovido uma alta concentração de renda nas mãos de um exíguo número de grandes proprietários de terras, o que teria inviabilizado, argumenta o economista, o crescimento de um mercado interno. Ou seja, diferentemente da economia cafeeira em São Paulo, compara Furtado, que teria permitido uma maior distribuição de renda, a economia açucareira, ao concentrá-la, teria contribuído para entravar a formação de um mercado interno dinâmico o suficiente para efetuar a transição de uma economia de exportação para uma economia industrial. Assim, no momento em que as exportações de açúcar tiveram seu impulso de crescimento arrefecido, a dinâmica do sistema teve sustada a possibilidade de empreender uma transição para a industrialização. Como discute o autor, não obstante sua expansão horizontal, através da economia de subsistência e da ocupação de terras de qualidade diminuta e mais propensas a sofrerem com as secas, a estagnação do açúcar teria tornado o Nordeste uma economia sem mecanismos que permitissem um impulso de crescimento.
2.2. Furtado elabora, em “A Operação Nordeste”, um plano de ação para dar conta dos problemas apresentados pela região. O primeiro objetivo deveria ser uma economia resistente à seca, o que demandaria um conhecimento mais profundo da região semiárida, ou seja, de seus recursos tanto de água superficial quanto subterrânea, bem como de sua flora, sendo necessária ainda a mobilização de crédito e assistência técnica. A ideia seria incorporar ao Nordeste “terras úmidas com invernos regulares”, por meio da abertura de “estradas adequadas, colonizando, organizando uma economia adaptada ao meio” (Furtado, 2009: 46). Contudo, Furtado chama a atenção para o imperativo de desenvolvimento das atividades secundárias, reivindicando uma linha de ação que tivesse em vista um aumento dos investimentos industriais no Nordeste. O processo de industrialização da região viabilizaria a incorporação de um amplo estoque populacional que se encontraria à margem nas zonas urbanas, uma vez que somente seria possível empregar “essa população por meio de um grande número das atividades do setor secundário, isto é, nas indústrias” (Furtado, 2009: 46), além de permitir “um esforço para diminuir a disparidade de ritmo de crescimento entre o Nordeste e o Centro-Sul” (Furtado, 2009: 47).
2.3. Mas, por outro lado, Furtado esposa uma perspectiva integrada entre a produção de alimentos e o processo de industrialização da região, entendendo que o crescimento do poder de compra das zonas urbanas e o desenvolvimento industrial seriam dois momentos de um mesmo processo. Sem o aumento da produção de alimentos haveria um aumento dos preços que contribuiria para frustrar o desenvolvimento industrial, uma vez que os salários monetários apresentariam forte tendência ao crescimento, o que retiraria a vantagem do Nordeste na concorrência com o Centro-Sul, a saber, seus salários mais baixos no setor secundário. Portanto, o ponto nevrálgico da economia do Nordeste residiria na agricultura, posto que se “não resolvermos o problema da utilização adequada das terras da faixa úmida – subutilizadas nos grandes latifúndios do açúcar e nos chamados vales úmidos da zona litorânea – não podemos criar, no Nordeste, uma indústria capaz de sobreviver” (Furtado, 2009: 49).
III. Considerações finais
– A despeito das divergências de Josué de Castro em relação a certos aspectos que informavam a Sudene, tanto ele quanto Celso Furtado se voltam para a resolução dos problemas enfrentados pelo Nordeste, procurando delinear alternativas para o desenvolvimento econômico da região. Ou seja, Castro e Furtado desenvolvem seus trabalhos sobre o Nordeste, enquadrando-os sob a ótica de uma luta contra o chamado “subdesenvolvimento”.
– Ambos propõem a integração entre o investimento na agricultura e o desenvolvimento urbano-industrial. Contudo, podemos identificar uma diferença significativa: apesar de entender a importância do tema da reforma agrária, Furtado teria preferido evitá-lo por conta do receio de gerar algum enfrentamento mais ríspido com as oligarquias agrárias, decretando o fim precoce da Sudene (Mendes, 2017), o que fica claro no texto “A Operação Nordeste”, no qual o tema não ganha corpo. Contudo, isso não quer dizer que a questão agrária não tenha importância no pensamento do economista paraibano, como pode ser notado em seu clássico livro Formação econômica do Brasil, publicado originalmente em 1959 e, como vimos, no próprio texto “A Operação Nordeste”. Já Castro se debruça minuciosamente, em Geografia da fome, sobre o tema da reforma agrária, reivindicando-a como projeto fundamental para dirimir o problema da fome no Nordeste, uma vez que a monocultura e o latifúndio jogariam papéis decisivos para a situação extremamente precária de grande parte da população da região.
– Se pensarmos na democracia como longa duração e como as interpretações do Nordeste afetam o seu aprendizado social como propõe o curso que estamos ministrando, Castro e Furtado situam-se naquele momento decisivo de transformação dos sentimentos mais difusos de injustiça (no tratamento de situações como a seca, a fome, as migrações e a violência) em questão social propriamente dita, como sugere Botelho (2023), inspirado em Barrington Moore Jr., no post de abertura da Série Nordeste BVPS. Não custa lembrar, ademais, que Josué de Castro chegou a ser reeleito, em 1958, como o deputado federal mais votado no Nordeste (Andrade, 1997), enquanto Furtado atuou diretamente como superintendente no projeto da Sudene, cujas reflexões aparecem sistematizadas, como vimos, em “A Operação Nordeste”.
Notas
[1] Agradeço a leitura sempre atenta e generosa do Prof. André Botelho, cujas sugestões foram fundamentais para a construção deste plano de aula.
[2] Como argumenta Afrânio Garcia Jr. (2016), a preocupação de Celso Furtado com a dimensão da historicidade surge de modo marcante, por exemplo, no livro Desenvolvimento e subdesenvolvimento, publicado em 1961. Garcia Jr. (2016: 271) argumenta que as críticas de Furtado buscavam se contrapor ao universalismo da ciência econômica inscrito em modelos clássicos, neoclássicos, keynesianos e marxistas, no intuito de “fundar a ideia de que todos eles servem para dar conta das economias de países do hemisfério norte, onde ocorreram revoluções industriais, mas que os diferentes arcabouços teóricos eram insuficientes para entender as dinâmicas de economias ‘periféricas’ ou ‘subdesenvolvidas.’”
[3] É interessante chamar a atenção para o experimento recentemente realizado por Pedro Cafardo (2023), que perguntou ao ChatGPT quais seriam os dez maiores economistas brasileiros e obteve como resposta o nome de Celso Furtado como o número um da lista, por conta de suas formulações a respeito do desenvolvimento econômico do Brasil.
Referências
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ANDRADE, Manuel C. de. (1997). Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo. Estudos Avançados. 11(29), pp. 169-194.
BASTOS, Elide R. (2005). Raízes do Brasil – Sobrados e mucambos: um diálogo. Perspectivas, São Paulo, 28, pp. 19-36.
BOTELHO, André. (2008). Uma sociedade em movimento e sua intelligentsia: apresentação. In: BOTELHO, André & BASTOS, Elide R & VILLAS BÔAS, Glaucia. (orgs.). O moderno em questão: a década de 1950 no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks.
BOTELHO, André. (2023). Nordeste autopoiesis. Série Nordeste. Blog BVPS. Post dia 27/05/2023. Disponível em: https://blogbvps.com/2023/03/27/serie-nordeste-nordeste-autopoiesis-por-andre-botelho/
CAFARDO, Pedro. (2023). Os dez maiores economistas brasileiros, segundo a IA. Valor Econômico. Texto publicado em 23 de maio de 2023. https://valor.globo.com/brasil/coluna/os-dez-maiores-economistas-brasileiros-segundo-a-ia.ghtml
CASTRO, Josué de. (2022). Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. São Paulo: Todavia.
FURTADO, Celso. (2009). A Operação Nordeste. In: O Nordeste e a saga da Sudene (1958-1964). Rio de Janeiro: Contraponto.
FURTADO, Celso. (2009). Discurso de posse na Sudene. In: O Nordeste e a saga da Sudene (1958-1964). Rio de Janeiro: Contraponto.
GARCIA JR., Afrânio. (2016). “Ares do mundo” e meditações sobre centros de decisões internacionais: o valor heurístico da “obra autobiográfica de Celso Furtado”. Política & Trabalho. n. 45, pp. 251-284.
MENDES, Flávio da S. (2017). No olho do furacão: Celso Furtado e Francisco de Oliveira nos primeiros anos da Sudene. Lua Nova, 100, pp. 283-311.
PÉCAUT, Daniel. (1990). Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática.
Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.