Hospedagem Vale Quanto Pesa | O astrônomo e o anarquista, por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves

O Blog da BVPS dá continuidade à Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. Propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais.

No post de hoje, trazemos o texto “O astrônomo e o anarquista”, de Rodrigo Jorge Ribeiro Neves (UFRJ), que se hospeda no ensaio “Vale quanto pesa”, de Silviano Santiago. 

É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações.

Acompanhe as postagens da Hospedagem, sempre às segundas e quartas-feiras. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.

Boa leitura!


O astrônomo e o anarquista

Por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves(UFRJ)

“Na escuridão percebi o valor enorme das palavras.”

Infância (1945), Graciliano Ramos.

A citação em epígrafe é do capítulo-conto “Cegueira”, publicado pela primeira vez no periódico Vamos Ler!, do Rio de Janeiro, em 5 de outubro de 1944. Segundo o manuscrito do escritor, mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, o texto foi escrito em 26 de julho de 1943, ou seja, poucos anos depois de sua soltura da cadeia e já quase no fim do regime estado-novista. “Cegueira” é o relato que reconstitui um momento difícil da vida de Graciliano Ramos quando era criança. Ele contraiu uma infecção nos olhos e, por isso, ficou bom tempo sem poder ir para a escola. O emplastro utilizado no tratamento o impedia de se mover livremente pela casa e rendeu-lhe comentários jocosos, até mesmo da mãe, como “cabra-cega” ou “bezerro encourado”. Aquela escuridão era um tremendo suplício.

Sabemos que a literatura de Graciliano Ramos prima pela linguagem enxuta e direta, fazendo com que, em geral, seja ressaltada sua predileção pelos substantivos nas eventuais análises de seu estilo. No entanto, os verbos também exercem função importante para examinar as estratégias narrativas do seu discurso ficcional. Logo no início do texto o narrador nos informa: “Afastou-me da escola, atrasou-me, enquanto os filhos de seu José Galvão se internavam em grandes volumes coloridos, a doença de olhos que me perseguiu na meninice”. Em seguida, desabafa sobre as dores e seus efeitos, que o limitavam cada vez mais, e em seu próprio ambiente doméstico: “Torturava-me semanas e semanas, eu vivia na treva, o rosto oculto num pano escuro, tropeçando nos móveis, guiando-me às apalpadelas, ao longo das paredes” (Ramos, 2003: 143).

Torturar, afastar e atrasar. Se estabelecida uma relação entre os três vocábulos, em uma primeira camada de leitura, reconstituímos a condição terrível do menino no interior alagoano que adoece, perde aulas e se prejudica em sua formação escolar. Em outra camada, identificamos a justaposição de temporalidades na construção do narrador e protagonista, ou seja, o escritor já maduro resgata episódios da sua infância por meio de recursos ficcionais, de maneira que o passado seja confrontado com o presente e, assim, se reinventam outras possibilidades de compreensão da própria vida (Miranda, 2009). Por fim, em mais uma camada, a partir das tensões entre passado e presente na construção desse narrador-menino, o texto nos leva a refletir sobre o funcionamento dos mecanismos de violência e de exclusão que constituem a sociedade brasileira e sua história.

O valor das palavras revela-se na escuridão porque é através delas que o narrador-menino encontra outras formas de ver, levando-o, portanto, a reconfigurar sua relação entre o conhecimento anterior do mundo (dado por tudo o que viveu até então e pelo que foi dito sobre ele) e o mundo possível. Para o narrador-escritor, memória, experiência e realidade social se articulam por meio da ficção, não como quem quer resgatar um passado casimiriano, supostamente ideal, mas como quem busca compreender e transformar o presente a partir de seus vestígios, dando voz e visão a quem não detém sequer a linguagem, seja o infans, seja o indivíduo violentado e sem acesso a condições mínimas de cidadania. Lembremos que nomear é também fazer (re)existir.

O ensaio “Vale quanto pesa”, de Silviano Santiago (1982), me remeteu a estes aspectos do conto autobiográfico de Graciliano Ramos e a pensar sobre o papel do discurso ficcional memorialista dos escritores modernistas nas dinâmicas da formação das culturas brasileiras. O título, para o leitor contemporâneo, talvez gere estranheza. Vale Quanto Pesa era o nome de um sabonete desodorante bastante popular nos anos 1950, ou seja, um produto industrializado, acessível e presente nos anúncios publicitários dos principais meios de comunicação. A relação custo x benefício estava explícita já em seu nome e no lema da propaganda: “Grande, bom e barato”. O consumidor precisava se convencer de que o valor pago em moeda corrente correspondia ao valor mensurado em quilogramas do produto. Todos sairiam ganhando, afinal?

O texto foi publicado originalmente em 1979, no número 10 da revista Discurso, do Departamento de Filosofia da USP, depois reunido em livro homônimo, com o subtítulo “ensaios sobre questões político-culturais”. Silviano parte de dados estatísticos sobre a situação da leitura no Brasil nos anos 1970. Para analisar os efeitos da ficção e sua dimensão social, era necessário investigar de que modo se dava o seu alcance por meio do seu principal objeto de transmissão na época, o livro. Embora na atualidade esse objeto não apresente mais o mesmo protagonismo em termos de materialidade, diante de tablets e smartphones, ele ainda exerce função significativa na constituição da comunidade de leitores. Aliás, é preciso assinalar as diferenças dos contextos dos quais estamos tratando aqui, a fim de entender como então passam a funcionar os textos.

Vale quanto pesa foi lançado em plena ditadura militar, mas já em fase de redemocratização. A situação era insustentável. O país atravessava profunda crise econômica e política, com enormes prejuízos sociais, escancarando o trágico atraso em que o regime autoritário havia nos lançado e com consequências até hoje. A pressão da sociedade civil foi aumentando até alcançar as primeiras eleições e explodir na campanha das Diretas Já, em 1984. Finalmente, no ano seguinte, por voto indireto, tivemos o primeiro presidente civil depois de 21 anos sob o controle dos militares. Porém, morto Tancredo Neves poucos dias depois, seu vice assumiu a cadeira, episódio de perversa dimensão simbólica e que dialoga tanto com a história da democracia neste país.

O ensaio de Silviano ressoa as principais questões atravessadas naquele tempo no que tange ao lugar da ficção brasileira moderna e contemporânea. Não bastava saber quem escrevia, mas também quem lia os livros de ficção em um país tão marcado por fissuras e ruínas. 60 mil leitores para 110 milhões de habitantes foi a proporção levantada por Roberto Schwarz, em 1970, e recuperada por Carlos Guilherme da Motta, em 1977, do qual o crítico e escritor mineiro lança mão. Ou seja, havia um leitor em um universo de pouco menos de 2 mil habitantes, ou pouco mais de cem pessoas no antigo Maracanã lotado. Estamos falando de um país com índices alarmantes de analfabetismo e profundamente desigual. A articulação entre a cultura escrita, a economia do discurso ficcional e a sociedade, nesse sentido, nos auxilia a refletir sobre a contribuição da literatura no desenvolvimento social e a identificar os seus problemas, pois o livro é não apenas resultante das relações sociais, mas também elemento constitutivo e agenciador dessas relações.[1]

Dentro do quadro ressaltado por Silviano, portanto, constatamos o inevitável: “O livro é, pois, objeto de classe no Brasil e, incorporado a uma rica biblioteca particular e individual, é signo certo de status social” (Santiago, 1982: 28). A literatura brasileira, neste caso a prosa de ficção, é produzida e consumida pela classe média, marcada por um “cosmopolitismo cultural burguês”, ou seja, interessada em um universalismo que vincule as obras a uma determinada tradição literária Ocidental. E se a literatura nacional desperta pouco ou quase nenhum interesse nesse público, concede-se algum espaço àquela em que se possam identificar traços da influência estrangeira, i.e., a valorização de sua busca de se ajustar a uma tradição com pretensões universais, ou seja, Europa e Estados Unidos.

Ora, como “Narciso acha feio o que não é espelho”, segundo a canção de Caetano Veloso, o discurso ficcional, no Brasil,

é a réplica (no duplo sentido: cópia e contestação) do discurso de uma classe social dominante, que quer se enxergar melhor nos seus acertos e desacertos, que quer conhecer a si mesma melhor, saber por onde anda e por onde anda o país que governa ou governava, que se quer consciente das suas ordens e desordens, ou ainda da sua perda gradual e crescente de prestígio e poder face a novos grupos ou a transformações modernizadoras na sociedade (Santiago, 1982: 28).

Assim, o romance contemporâneo, continua o ensaísta, assume a função social de garantir um “espaço crítico” onde os grupos privilegiados se vejam refletidos, em que mesmo em suas manifestações mais contestadoras não seja possível vislumbrar qualquer possibilidade de mudança desse ciclo, de modo que as estruturas de poder se mantivessem, não como se fossem consequências anômalas do processo em curso, mas porque são condicionantes para que o leitor e o escritor de classe média tenham seu lugar garantido na fila do Clube dos Cosmopolitas Personnalité, ou seja, sem precisar entrar em fila alguma.[2]

Astrônomos do subsolo

Para romper com esse ciclo e dissolver o clube, são necessários outros leitores e romancistas, que sejam capazes de compreender e propor reflexões a grupos sociais distintos. Entretanto, adverte Silviano (1982: 29), é necessário que essas figuras tenham a possibilidade de se tornarem leitores ou romancistas. Como, então, alcançar esse objetivo em uma sociedade tão desigual quanto a nossa, especialmente em um período autoritário? Apesar de o regime ditatorial já estar em fase de agonia, na época do ensaio, suas consequências seriam duradouras, haja vista que suas condições não foram criadas somente a partir da instauração do Golpe Civil-Militar de 1º de abril de 1964. Os valores da classe média não seriam suficientemente questionados pela via de uma “ficção populista”, com apelo tão somente entre os seus, servindo-lhes, assim, como mera purgação de suas culpas pequeno-burguesas.

Em face do centenário da Semana de Arte Moderna, no ano passado, e das próximas efemérides relacionadas aos modernistas viajantes pelo Brasil, em 2024 e 2028, é preciso examinar e discutir as relações e as tensões da produção desses modernismos, em especial os sudestinos, com a ficção brasileira e latino-americana contemporânea, levando em conta o papel de um dos mais importantes movimentos culturais brasileiros do século XX (Botelho & Hoelz, 2022). Não estamos mais hoje em uma ditadura militar, é verdade, embora tenhamos atravessado recentemente um governo de militares pouco (ou nada) afeitos ao regime democrático e ao estado de direito, seguidores aficionados de seus antecessores do período de exceção. No entanto, como movimento cultural, o modernismo ainda exerce profunda influência nos rumos das concepções de cultura da atualidade, invariavelmente de modo crítico, seja pelas mais tributárias ou as opositoras.

Entre Marx e Proust, como aponta Silviano, os modernistas encontraram na forma do discurso ficcional memorialista um mecanismo de contestação desses valores burgueses, nos quais muitos de seus representantes estariam inseridos. A exposição de suas contradições só seria possível através de um texto que reconstituísse a trajetória individual, “pela sua rebeldia social e audácia política, pela sua fuga e desrespeito da norma burguesa, pela sua ambição de ser exemplo e modelo autênticos do individualismo em regimes autoritários”, no sentido de despertar entre os seus a consciência de si mesmos e de sua condição social (Santiago, 1982: 30). Não há espaço nem tempo para contrição ou neutralidade. O trabalho de memória, portanto, exerce papel fundamental, por meio da ficção, na compreensão da realidade social e dos modos como se estruturaram suas engrenagens:

[…] o texto da lembrança alimenta o texto da ficção, a memória afetiva da infância e da adolescência sustenta o fingimento literário, indicando a importância que a narrativa da vida do escritor, de seus familiares e concidadãos, tem no processo de compreensão das transformações sofridas pela classe dominante no Brasil (Santiago, 1982: 31).

É o caso, por exemplo, da poesia de Carlos Drummond de Andrade, marcada pela ambiguidade entre um desejo de revolução político-social, como em A rosa do povo,e um apego aos valores familiares tradicionais, econômicos e culturais, como em Boitempo. O impasse também se manifesta em passagens de seu diário O observador no escritório (1985), como nesta entrada de 12 de abril de 1945: “Há uma contradição insolúvel entre minhas ideias ou o que suponho minhas ideias, e talvez sejam apenas utopias consoladoras, e minha inaptidão para o sacrifício do ser particular, crítico e sensível, em proveito de uma verdade geral, impessoal, às vezes dura, senão impiedosa” (Andrade, 1985: 33).Na prosa de ficção, como bem destaca o ensaísta, não faltam exemplos de romances de feição memorialista que adotam a mesma postura, tais como Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, Menino de engenho, de José Lins do Rego, A bagaceira, de José Américo de Almeida, Angústia, de Graciliano Ramos, dentre outros.

Há ainda as produções de teor autobiográfico mais acentuado, como é o caso da monumental obra memorialista de Pedro Nava e de alguns dos autores referenciados anteriormente. A copiosa correspondência de Mário de Andrade, que, cada vez mais, vem recebendo edições recíprocas, ou seja, com as cartas tanto do remetente quanto do destinatário, também se insere nas tensões elencadas, considerando que o texto epistolar é uma escrita de si, mas também, “território de criação” (Moraes, 2007). Portanto, ele carrega os conflitos do sujeito na construção do discurso ficcional memorialista, considerando que a carta é espaço de exposição e de encenação: “Essa invenção de si (mise-en-scène), da qual o remetente pode ter maior ou menor grau de consciência, forja sempre estratégias de sedução” (Moraes, 2007).

Voltemos ao caso de Graciliano Ramos, autor de Memórias do cárcere, hospedado por Silviano Santiago em seu brilhante romance Em liberdade, em que o autor vivencia ficcionalmente Graciliano, Cláudio Manuel da Costa e Vladimir Herzog. A ficção, neste sentido, é o lugar não apenas do escrever sobre, mas também do escrever(-se) sob: “Quero que todo o meu eu seja – agora e hoje – apenas um emaranhado pesado, denso e consistente de frases. Elas camuflam um corpo dolorido que não quer pensar nas dores sofridas que castigam os sentidos e a memória” (Santiago, 2022: 25). Os vestígios e as lacunas do passado, no corpo, são preenchidos pelo trabalho com a linguagem, que faz incidir outra luminosidade em meio à escuridão, ainda que seja uma única fagulha rasgando as trevas, suficiente para vislumbrar o que se esconde no interior da noite e possamos, quem sabe, nos mover.

Os limites entre o discurso ficcional memorialista e o discurso autobiográfico na literatura brasileira realmente não são nada estanques, é difícil a delimitação. Em Graciliano Ramos, Infância certamente se impõe como exemplar nesse aspecto, considerando o grau de fabulação necessário para conferir narratividade ao substrato do vivido, cercado de inconsistências inevitáveis pelo distanciamento temporal. No entanto, o ficcionista se vê ainda mais livre para inventar a vida que, de fato, viveu. A relação com as palavras em suas primeiras incursões nos traz elementos para acompanhar a formação do escritor e os problemas inerentes aos aspectos socioeconômicos regionais de sua origem, mas que reverberam nas/das condições vivenciadas pelo escritor na atualidade: “Não há prisão pior que uma escola primária do interior” (Ramos, 2003: 202).

No capítulo-conto “Os astrônomos”, de onde foi retirada esta citação, assim como “Cegueira”, estamos diante do narrador-menino em seus primeiros contatos com a palavra. No caso deste último, um problema visual o impediu de dar continuidade ao seu processo de aprendizagem, mas acabou se revelando em uma oportunidade de se relacionar com a palavra de outras maneiras e descobrir seus valores. Em “Os astrônomos”, o menino, “quase analfabeto” aos nove anos, tenta vencer as dificuldades com a leitura de um volume de histórias, sugerida pelo pai, que geralmente mal lhe dirigia a palavra. Este incentivou os primeiros encontros, auxiliando o menino na decifração de palavras e a vencer o ritmo da narrativa: um casal, os filhos, a floresta, o lobo e outras criaturas surgiam a custo, mas de modo suficiente para animá-lo na tarefa. Mas o encanto daquela cumplicidade literária durou pouco: “[…] afastou-me com um gesto, carrancudo. Nunca experimentei decepção tão grande” (Ramos, 2003: 204).

Recorreu a sua prima Emília, sempre atenciosa e diligente, que o sugeriu a realizar a leitura do livro sozinho, mas o pequeno Graciliano redarguiu, admitindo a impossibilidade de compreender e juntar as palavras. A prima protestou, dando-lhe o exemplo dos astrônomos. Se existiam indivíduos capazes de ver tão longe, por que ele não conseguiria entender as palavras que estavam diante dele, no papel?

Eu, os astrônomos, que doidice! Ler as coisas do céu, quem havia de supor?

E tomei coragem, fui esconder-me no quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a inteligência espessa. Vagarosamente.

Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes (Ramos, 2003: 206).

Graciliano Ramos também se ocuparia do tempo presente, dos homens presentes, como o Drummond de Sentimento do mundo; entretanto, a literatura o levaria ao subsolo, seja o da condição humana, seja o das injustiças sociais deste país. As camadas do mundo ao redor que ele buscaria devassar se revelariam vagarosamente, como o frágil e insistente brilho de uma estrela, que já não existe, mas que sobrevive na luz que atravessa tantas ausências nas trevas infinitas do universo.

A propósito do tema, o cineasta chileno Patricio Guzmán, em um de seus filmes sobre a ditadura no país andino, A nostalgia da luz (2010), recorre a metáfora semelhante para pensar na relação entre passado, presente e trabalho de memória. O deserto do Atacama recobre os restos mortais dos desaparecidos políticos do sangrento regime do general Augusto Pinochet e, ao mesmo tempo, serve de base para pesquisas dos astrônomos e seus gigantescos telescópios, que perscrutam os céus sob o rastro da poeira de astros e estrelas. Em determinado momento da película, um dos astrônomos do observatório aponta para a semelhança entre o seu trabalho e o dos familiares dos desaparecidos pela ditadura, ambos em busca do passado, mas com uma grande diferença: “Nós buscamos algo que não perturba o nosso sono”.        

Anárquicos, bandidos e outros (anti)heróis

 Segundo a 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, realizada em 2019, o Brasil possui cerca de 100 milhões de leitores, ou 52% da população. Em números absolutos, a grande maioria possui renda familiar entre um e cinco salários-mínimos (76,3 milhões) e pertence às classes C, D e E (70 milhões). Ou seja, a maior parte dos leitores no país de hoje tem perfil bem distinto daqueles indicados na pesquisa dos anos 1970. Claro, a população não apenas cresceu, mas também ocorreram diversas mudanças nos rumos de nossa história com o fim da ditadura, a redemocratização e a gradual consolidação do estado democrático de direito e dos anseios da sociedade civil por meio da Constituição de 1988.

Uma hora chegaríamos. Foram anos e anos de resistências e lutas políticas levadas a termo por diversos segmentos dessa sociedade, a fim de tornar este país mais justo, democrático e menos desigual. As conquistas que permitiram a mudança no perfil de leitores tiveram nos governos Lula terreno fértil para se ampliarem, por meio de programas de transferência de renda, projetos na área da cultura e ampliação do acesso ao ensino público superior pelas camadas populares. A jornalista e escritora Luciana Araújo Marques ressalta essa guinada fundamental, que não apenas transformou o perfil dos leitores, mas também dos autores:

A ascensão educacional das camadas populares no Brasil – e, dentro delas, a especificidade do fator étnico-racial, por conta das mazelas entranhadas em séculos de escravidão e apagamento no país – amplia a visão na tarefa de restaurar o passado, além de gerar uma aproximação literária singular sobre certas matrizes iletradas e pouco letradas. Como se aquele ponto de partida (as próprias origens e realidade testemunhada) se convertesse também em ponto de chegada (uma irmanação expandida e coletiva) (Marques, 2022).

Embora a maioria dos escritores brasileiros ainda seja branca, de classe média e moradora dos grandes centros urbanos do país,[3] como atesta Marques, há um número considerável de escritoras e escritores de origem social não privilegiada que ascendeu socialmente nas últimas décadas, os primeiros (ou segundos, nos “melhores” casos) de suas famílias a terem um diploma de curso superior, negros e provenientes das favelas e subúrbios brasileiros. A jornalista foi uma das primeiras a resenhar os livros de estreia de dois autores contemporâneos que apresentam alguns desses marcadores sociais: O sol na cabeça, de Geovani Martins, e Torto arado, de Itamar Vieira Jr., este último se tornando em um dos maiores sucessos editoriais no país dos últimos anos. Além destes, conforme citado por Luciana Marques, temos ainda Reza de mãe, de Allan da Rosa, Água de barrela, de Eliana Alves Cruz, e O avesso da pele, de Jefferson Tenório, entre tantos outros.

Não é minha intenção apresentar uma lista exaustiva da literatura contemporânea de autores de origem social periférica, não só pela falta de espaço, mas também porque foge da reflexão ensejada pelo texto de Silviano, em que nos hospedamos. Há excelentes periódicos literários que vêm ocupando cada vez mais o cenário cultural e oferecendo listas intermináveis destas e outras publicações, como Suplemento Pernambuco, Quatro Cinco Um e o caderno “Pensar”, do Estado de Minas, para ficar nos mais conhecidos.

Também não estamos levando em conta a inclusão desses novos atores sociais em outros campos artístico-culturais, como o teatro, o cinema, as artes visuais e a música. Nesta, por exemplo, o caso dos Racionais MC’s é emblemático, pois o grupo não apenas revolucionou o gênero musical, mas também se tornou referência literária por meio de letras de grande sofisticação estética e força política. São homens negros e periféricos da maior metrópole da América Latina, motor socioeconômico de produção de riquezas e de aprofundamento das desigualdades. Além disso, a tendência contemporânea de diluição da fronteira entre os gêneros artísticos abriu caminho para que poesia e música voltassem a dialogar, como já faziam desde o início dos tempos. A diferença é a de que agora as minorias podem participar mais desse diálogo e falar de si mesmas. Esse espaço, é importante recordar, não foi dado, mas tomado de volta, “contrariando as estatísticas”.

 Dentro desse quadro, cabe indagar: o discurso ficcional memorialista dos autores do(s) modernismo(s) ainda contribui para a inserção de outras vozes na narrativa e a pensar com a / na literatura na sociedade? As condições que estruturam o nosso atraso e a exclusão social, sem dúvida, são ainda enfrentadas pelo legado dessas autoras e autores. Depois do centenário da Semana de Arte Moderna, temos ciência de seus fracassos, como já admitira Mário de Andrade em sua conferência de 1942, no então Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro. Embora não fossem exemplo para ninguém, poderiam servir de lição, considerando que o passado, como também assinalara o autor de Lira paulistana, deve ser objeto de meditação. E se é inevitável a repetição, que possamos operar na diferença.

Ora, como “é impossível apagar o discurso europeu e não é possível esquecer mais o discurso popular”, o entrecruzar de discursos que silencia o narrador-intelectual e abre espaço para que ecoe, protagonista, a voz dos dominados é, ainda, chave para “desrecalcar todos os valores que foram destruídos pela cultura dos conquistadores” (Santiago, 1982: 39). A ascensão da extrema direita, a cultura da violência e do ódio e a erosão das instituições democráticos na contemporaneidade nos servem de alerta. O avanço das tecnologias da informação e comunicação, apesar de, em muitos casos, contribuir para a democratização do conhecimento, exerce também uma grande e perigosa influência.[4] Portanto, o número volumoso de leitores, em comparação aos anos 1970, não nos deve animar demais. A estrada é longa e o “bisturi literário” continua a ser “mais anárquico e bandido”, capaz ainda de “cortar com rigor e vigor as carnes esclerosadas da classe dominante brasileira” (Santiago, 1982: 40).

 O caso de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, analisado meticulosamente por Silviano em seu ensaio, se enlaça (e se hospeda) a outros, antes e depois dele. Um narrador-intelectual não nomeado se retira e abre o espaço para o caudaloso discurso de Riobaldo. No século anterior, Maria Firmina dos Reis havia realizado algo semelhante, embora sem a mesma depuração literária de Rosa. O conto “A escrava” (1887) dá voz a Joana, mulher negra escravizada, que fugia de seu algoz com um dos filhos. No entanto, a narrativa é inicialmente conduzida por uma mulher branca da elite aristocrática, nomeada apenas como “uma senhora”, que oferece proteção a Joana e ao menino. Júlia Lopes de Almeida, mulher branca e de família privilegiada, opera, de certo modo, no entrecruzar de discursos ao conceber o romance epistolar Correio da roça (1913), em que uma mulher de posses ajuda a outra de menor prestígio social a obter sua independência financeira, por meio do trabalho e da educação.

Retomando os modernistas, não há como não mencionar também uma das maiores realizações da poesia em língua portuguesa, o épico Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles, nascida na região do Estácio, no Rio de Janeiro, berço da cultura popular carioca. O cruzamento de temporalidades, fatos e discursos reconstitui episódios que remexeram a sociedade mineira setecentista, enfeixados, na história, sob o nome de Inconfidência. Além das figuras de destaque do evento, como Joaquim Silvério dos Reis e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, Cecília dá voz a negros, ciganas e outros personagens marginalizados pela história. O verso que se repete ao longo do “Romance LXXXIV ou dos cavalos da Inconfidência”, “Eles eram muitos cavalos”, intitula o romance de Luiz Ruffato, um dos livros representativos do resgate das vozes dos excluídos na literatura brasileira contemporânea.

Podemos citar ainda outros modos diversos em que vem se dando o entrecruzar de discursos, em um necessário e incisivo processo de anarquivamento, como o documentário AmarElo: É tudo pra ontem, de 2020, sobre os bastidores do show do rapper Emicida, no Theatro Municipal de São Paulo, reivindicando o protagonismo negro nos espaços de onde historicamente foram apartados; o enredo História para ninar gente grande, do desfile de 2019 da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, concebido pelo carnavalesco Leandro Vieira, apresentando “um país que não está no retrato”; e a exposição Nakoada: estratégias para a arte moderna, de 2022, sob curadoria de Beatriz Lemos e Denilson Baniwa, no MAM-Rio, onde as obras de artistas visuais indígenas ocupam, estratégica e criticamente, o mesmo espaço de obras de modernistas.

O legado do modernismo e o combate contra nossa tradição autoritária (Schwarcz, 2019) atravessam estas e outras produções artísticas, anárquicas e anarquivistas. Entre elas, as tensões dos discursos expõem aspectos estruturais da formação das nossas culturas e apontam para caminhos onde, talvez, possamos enxergar alguma luz na escuridão e perceber o valor enorme não apenas das palavras, mas também de uma sociedade onde todas e todos tenham voz.


Notas

[1] Trato aqui do conceito de reflexividade social desenvolvido em Botelho & Hoelz & Bittencourt (2022).

[2] Podemos também estabelecer diálogo dessas condições evidenciadas por Silviano com as hipóteses dos historiadores João Fragoso e Manolo Florentino (2001: 18-19) quanto ao contexto socioeconômico do período colonial e, desta maneira, pensar em suas ressonâncias na contemporaneidade: “[…] a natureza arcaica da formação colonial tardia impede que a economia possa ser apreendida por si mesma, i. e., sem levar em conta os aspectos não-econômicos que informam seu funcionamento. Daí a hipótese que norteia toda a reflexão: a de que a reprodução do sistema econômico se imbricava organicamente na contínua reiteração de uma hierarquia social fortemente excludente”.

[3] Em torno desse perfil, Regina Dalcastagné (2005) realizou pesquisa indispensável, que aponta para o caráter elitista, misógino, homofóbico e racista refletido na literatura brasileira, a partir de um controle do discurso que estrutura a formação de nossa sociedade.

[4] Quanto a esta questão, o sul-coreano Byung-chul Han (2012) salienta que, ao contrário do que se pensa, a quantidade enorme de informações na sociedade atual não resulta em transparência, mas em opacidade. O francês Jean-Claude Monod (2013: 124), em perspectiva semelhante, nos previne que o excesso de informação e de solicitações acaba com a formação e a disposição para se dedicar a aprender e compreender: “Trop d’information tue la formation, trop de sollicitations tuent la disposition à prendre le temps d’apprendre et de comprendre”.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. (1985). O observador no escritório: páginas de diário. Rio de Janeiro: Record.

BOTELHO, André & HOELZ, Maurício. (2022). O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado. Petrópolis, RJ: Vozes.

BOTELHO, André & HOELZ, Maurício & BITTENCOURT, Andre. (2022). A sociedade dos textos. Belo Horizonte: Relicário.

DALCASTAGNÉ, Regina. (2005). A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, UnB, Brasília, n. 26, p. 13-71, jul./dez. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9077&gt;.

FLORENTINO, Manolo & FRAGOSO, João. (2001). O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c.1790 – c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

HAN, Byung-Chul. (2012). A sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes.

MARQUES, Luciana Araújo. (2022). De onde venho: a literatura brasileira e as conquistas no ensino superior. Suplemento Pernambuco, Recife, n. 195, maio 2022. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/capa/2889-a-literatura-brasileira-e-as-conquistas-no-ensino-superior.html&gt;.

MIRANDA, Wander Melo. (2009). Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

MONOD, Jean-Claude. (2013). Écrire: à l’heure du tout-message. Paris: Flammarion.

MORAES, Marcos Antonio de. (2007). Epistolografia e crítica genética. Ciência e Cultura. S. Paulo, v. 59 (1), jan./mar.

RAMOS, Graciliano. (2003). Infância. Rio de Janeiro: Record.

SANTIAGO, Silviano. (2022). Em liberdade. São Paulo: Companhia das Letras.

SANTIAGO, Silviano. (1982). Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

SCHWARCZ, Lilia. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras.

A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições

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